sábado, 24 de dezembro de 2016

Um poema para quem acha que caminha vazio

Carrego comigo há dezenas de anos há centenas de anos o pequeno embrulho. Serão duas cartas? será uma flor? será um retrato? um lenço talvez? Já não me recordo onde o encontrei. Se foi um presente ou se foi furtado. Se os anjos desceram trazendo-o nas mãos, se boiava no rio, se pairava no ar. Não ouso entreabri-lo. Que coisa contém, ou se algo contém, nunca saberei. Como poderia tentar esse gesto? O embrulho é tão frio e também tão quente. Ele arde nas mãos, é doce ao meu tato. Pronto me fascina e me deixa triste. Guardar um segredo em si e consigo, não querer sabê-lo ou querer demais. Guardar um segredo de seus próprios olhos, por baixo do sono, atrás da lembrança. A boca experiente saúda os amigos. Mão aperta mão, peito se dilata. Vem do mar o apelo, vêm das coisas gritos. O mundo te chama: Carlos! Não respondes? Quero responder. A rua infinita vai além do mar. Quero caminhar. Mas o embrulho pesa. Vem a tentação de jogá-lo ao fundo da primeira vala. Ou talvez queimá-lo: cinzas se dispersam e não fica sombra sequer, nem remorso. Ai, fardo sutil que antes me carregas do que és carregado, para onde me levas? Por que não me dizes a palavra dura oculta em teu seio, carga intolerável? Seguir-te submisso por tanto caminho sem saber de ti senão que te sigo. Se agora te abrisses e te revelasses mesmo em forma de erro, que alívio seria! Mas ficas fechado. Carrego-te à noite se vou para o baile. De manhã te levo para a escura fábrica de negro subúrbio. És, de fato, amigo secreto e evidente. Perder-te seria perder-me a mim próprio. Sou um homem livre mas levo uma coisa. Não sei o que seja. Eu não a escolhi. Jamais a fitei. Mas levo uma coisa. Não estou vazio, não estou sozinho, pois anda comigo algo indescritível. Carlos Drumont de Andrade

2 comentários:

  1. Ninguém caminha vazio. Transportamos connosco não um, mas vários pequenos embrulhos!

    ResponderEliminar
  2. Pois e ,ninguém caminha sozinho ,sempre se encontra alguma coisa que nus carrega , vamos tentar adivinhar , será uma flor? ou um lenço ? ou uma carta? vamos tentar adivinhar, será amor,carinho,amizade, ou será uma doença RARA que eu carrego alguns anos ,mas como pesa ! mas a doença ,não se embrulha ,sofre-se ,entao vamos abrir um desses embrulhos ,alguém do alem me disse não faças isso, mas como eu sou determinada ,abri ,podia ser uma bomba , dos senhores que querem acabar o mundo,começam por destruir as cidades ,as crianças indefesas , mas fiquei muito,muito ,feliz , era a Paz ,que o mundo tanto precisa ,
    Maria de Fátima OLiveira

    ResponderEliminar