domingo, 18 de dezembro de 2016
UM DIA AINDA ME HÁS-DE DAR UM CARRO
Uma história de vida
Um dia, entra-me pelo consultório um doente com um ar quiçá alegre. Tratava-se de um senhor na casa dos seus setenta anos que tinha estado muito recentemente internado no hospital por EAM. Fiz a consulta habitual: sintomatologia, hábitos de vida, exame físico, planificação de tratamento, e em toda ela esteve subjacente este humor inesperado.
Já no final da consulta atirei:
- O senhor desculpe, mas o que está verdadeiramente a sentir? Já que me parece tão contente!
Queria sobretudo saber se se trataria de um sentimento que tenho encontrado em alguns doentes sobreviventes de doença grave que passam a encarar a vida, após o acontecimento marcante, com mais sabor, mais valorização, com a consciência de uma segunda hipótese. Preocupava-me sobretudo que se pudesse em alternativa tratar de uma euforia algo patológica que por vezes tem o seu “”rebound” com desânimo, desmotivação e mesmo depressão.
- Porquê? Nota-se doutora? Pergunta o doente.
-Então não se nota? Até os seus olhos riem!
- Sabe doutora, fiquei muito feliz por ter estado novamente internado neste hospital. Esta é a minha segunda casa!
- Então esteve aqui internado no tempo do sanatório…
- Cresci aqui. Vim para cá menino, vi muita gente morrer ao meu lado, e saí daqui já jovem mancebo. Conheceu o Srº Drº α ?
- Sim, sim, ainda o conheci no activo pouco tempo antes da reforma. Penso que se reformou por ter ultrapassado o limite de idade previsto na lei, mas ainda fui posteriormente com ele privando, já que se manteve a vir ao hospital às reuniões do seu serviço e, digamos que com alguma assiduidade, passava aqui nesta área.
- Aquilo é que era um doutor! Sabe, para mim era um pai. Eu vim para aqui criança, a minha família deixou-me cá para morrer, ele era o pai que não pude ter. Se tiver tempo, posso contar-lhe uma bonita história.
- Faz favor. Para uma boa história tenho sempre tempo.
Faço aqui um parêntesis para dizer ao leitor que, se por acaso ou má sorte minha for gestor hospitalar, saiba que há por aqui ainda muitos médicos que não se resignam à pressão dos tempos ao minuto optimizados em trabalho objectivamente produtivo.
- Sabe, como lhe dizia, aqui cresci e sempre pensei que aqui iria morrer. Mas um dia o Srº Drº α mandou-me chamar ao seu gabinete e disse-me que tinham vindo umas injecções de França, um novo medicamento, descoberta recente, muito caro; que só alguns doentes iriam ser seleccionados.
- Ó rapaz, queres tomar as injecções? Teria perguntado o médico.
- Pois claro que quis! Está a ver Drª, existia então uma esperança de melhoria!... E um dia o Srº Drº voltou a mandar-me chamar ao gabinete.
- Queres-te ir embora do hospital? Se quiseres podes ter alta, mas toma bem nota do que te digo: no dia x às y horas tens de estar no meu consultório que fica na Baixa, nesta morada que aqui tens. Se não compareceres eu mando a polícia atrás de ti e voltas a ser internado.
- Que mais eu queria ouvir? Saír do hospital era algo que nem nos meus melhores sonhos eu esperava! Mas sabe Drª, nessa altura não existia Segurança Social. Assim eu, moço jovem e tísico, encontrei-me na rua. Eu era um indigente! Encontrei trabalho como moço de recados mas o que ganhava era um sítio para dormir e a sopa diária. Não tinha dinheiro. Mas eu lá ia ao consultório do Srº Drº, no dia e hora combinados. Roubava pelo caminho umas laranjas ou umas maçãs, e com muita vergonha explicava ao Srº Drº que não tinha ainda dinheiro para pagar a consulta. E ele sempre me dizia:
- Eu pedi-te alguma coisa? No próximo dia z, às y horas, cá te espero para um novo exame. E não te preocupes: um dia ainda me hás-de dar um carro.
-E lá se ia passando o tempo, eu moço de recados roubando umas peças de fruta para levar à consulta do Srº Drº que me ouvia, escutava, fazia a radioscopia, me marcava a próxima vinda, e no final quando eu balbuciava a minha vergonha, ele repetia:
- Eu pedi-te alguma coisa? No próximo dia v, às y horas, cá te espero para um novo exame. E não te preocupes: um dia ainda me hás-de dar um carro.
Até que um dia ele mudou:
- Pronto rapaz, estás curado! Não precisas de voltar.
- Era o que eu queria ouvir… meti-me num barco e abalei para o Brasil. Fui apoiado por Portugueses onde comecei novamente como moço de recados. Mas de moço de recados passei a empregado, de empregado a capataz, de capataz a gerente, de gerente a sócio, de sócio a empresário. E a vida correu-me muito bem. Conhece a empresa π ?
Não conhecia não. Mas eu, reles escritora desta história, sou um pouco distraída, e então quando toca a finanças ou algo que com isso se relacione, sou um completo zero à esquerda.
-Ó doutora, é uma grande empresa! É minha!
- As minhas desculpas Homem, eu acredito, se o Senhor o diz…
- Pois então como dizia a vida correu-me muito bem. Não é para me gabar mas ganhei muito dinheiro. Bom, quando cheguei perto dos meus 65 anos de idade pensei: está na hora de voltar à minha Terra, quero morrer em Portugal! E voltei. Os primeiros 2 anos foram para transferir e organizar os negócios aqui em Portugal. Quando estabilizei as empresas fui saber do Srº Drº. E não é que ainda tinha consultório no mesmo local? Então marquei uma consulta. Na hora da consulta o Srº Drº mandou-me entrar, sentar e perguntou-me.
- Então de que é que o Senhor se queixa?
- Eu não me queixo de nada! O Srº Drº disse-me que eu estava curado!
- Havia de ver Drª, eu disse-lhe: - O Srº Drº não me reconhece? Não se lembra do rapaz assim assim… e claro que ele se lembrava, demos um grande abraço, o Srº Drº era um pai para mim! E contei-lhe da minha vida, como correu, o que fiz, como estou. No final perguntou-me.
- E então o que te traz por cá agora?
- E eu disse-lhe. – O Srº Drº lembra-se de quando eu vinha aqui às suas consultas e lhe trazia ora umas laranjas, ora umas maçãs? Era tudo roubado Drº, eu não tinha dinheiro e lembra-se do que o Srº Drº me dizia?
Perante o ar de dúvida do Drº eu esclareci-o: O Srº Drº sempre me repetia: Um dia ainda me hás-de dar um carro!
- E agora Srº Drº, agora que já lhe contei da minha vida e das minhas empresas, o Srº Drº como vê pode estar à vontade, e eu só tenho uma pergunta a fazer-lhe: Qual é o carro que o Srº Drº quer?
- Sabe o que o Srº Drº me respondeu?
Eu não fazia a mínima ideia…
- Então não me disse que o conheceu bem?
- Bem, bem, é como quem diz… Perante uma situação dessas eu nem de mim faço ideia do que responderia!
- Pois o Srº Drº olhou para mim a pensar daquele jeito dele, e depois muito calmamente disse-me.
- Pois agora, eu já não é um carro que quero.
Espanto não?
- Eu agora, quero é ser o médico das tuas empresas!
- E lá ficou, médico das minhas empresas com muita honra minha, até ao final da sua vida. Agora que ele morreu ainda lá tenho o filho a substituí-lo. E olhe que, não sei se o conhece também mas não tem nada a ver com o paizinho dele. Só o lá tenho, e terei até ele o querer, é por muito respeito que tenho ao seu paizinho! Ele era para mim um pai!
Competirá sempre ao autor rematar as suas histórias. Mas nesta, apenas me ocorre uma frase. “Já não há Mestres!”.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário