terça-feira, 20 de dezembro de 2016
O Cavaleiro sobre o gêlo
Era um Inverno longo e rigoroso e o nosso lindo rio da Floresta Negra ficou gelado durante semanas. Não consigo esquecer o sentimento de estranheza e de horrível encantamento com que entrei no rio na primeira manhã gélida, porque o rio era fundo e o gelo tão claro que era como se visse a água verde, o fundo arenosos com pedras, as plantas aquáticas fantasticamente entrelaçadas e de vez em quando o dorso escuro de um peixe.
Andei com os meus camaradas por ali durante manhãs ou tardes com as faces a queimar e as mãos roxas de frio, o coração a bater com energia devido ao movimento rítmico e forte da patinagem, cheio da fabulosa força inconsciente de prazer da infância. Fazíamos corridas, saltos em comprimento, saltos em altura, jogávamos à apanhada e aqueles de nós que ainda tinham os antigos patins de osso atados às botas com guitas, não era de longe os piores corredores. Mas havia um, filho de um industrial, que tinha um par de patins "Halifax" que não tinham nem correias nem atacadores e que se podiam pôr e tirar em dois segundos. A palavra "Halifax" ficou a partir de então e durante muitos anos a fazer parte das listas do que eu queria para o Natal, mas sempre em vão: e quando doze anos mais tarde quis comprar uns patins verdadeiramente bons e pedi uns Halifax numa loja, desfez-se, com grande mágoa minha, um ideal e um pedaço da minha fé de criança, quande me afirmaram, sorrindo, que Halifax era um sistema ultrapassado e que já há muito estava fora de uso. Eu preferia patinar sózinho até ao caír da noite. Lançava-me a correr, aprendi a parar e a desviar-me de qualquer ponto, correndo a grande velocidade, pairava gozando o prazer de aviador, desenhando lindas curvas. Muitos dos meus camaradas usavam o tempo no gelo para andarem atrás das raparigas para as namorarem. Para mim as raparigas não existiam. Enquanto alguns lhes prestavam todas as honras, rodeando-as, ansiosos e tímidos, ou levando-as, cheios de desenvoltura e audácia, eu gozava sózinho a liberdade do prazer de patinar. Sentia apenas compaixão ou desprezo pelos que "andavam atrás das raparigas". Porque das confissões de vários amigos, eu pensava saber como, no fundo, eram questionáveis todos os seus prazeres.
Ora, já para o fim do Inverno, chegou-me um dia aos ouvidos a novidade de que o Nordkaffer tinha ultimamente beijado várias vezes Emma Meier durante a patinagem. Beijar! A notícia fez-me subir repentinamente o sangue ao rosto. Isto era realmente diferente das conversas insípidas e dos tímidos apertos de mão que os namorisqueiros louvavam como sendo a maior das delícias. Beijar! Era um som de um mundo timidamente pressentido, fechado, estranho, tinha o aroma saborosos dos frutos proibidos, tinha qualquer coisa de secreto, de poético, de indizível, isso pertencia àquela região horripilantemente atraente, escura e doce, que nos era a todos omitida, mas que conhecíamos pela intuição e que lendárias aventuras de amor de heróis namoradeiros punidos pela escola iluminavam aos bocados. O Nordkaffer era um rapaz de catorze anos, de Hamburgo, Deus sabe como era manhoso, que eu muito admirava e cuja fama, que florescia até bem longe da escola, me fazia passar muitas noites sem dormir. E Emma Meier era sem qualquer dúvida a rapariga mais bonita de Gerbersau, loura, elegante, orgulhosa e da minha idade.
Daquele dia em diante as preocupações e os planos tumultuavam no meu espírito. Beijar uma rapariga, isso ultrapassava todos os ideais que eu tinha tido até então, tanto em si mesmo, como tam´bém sem dúvida por ser proibido e ter a desaprovação da escola. Percebi muito rápidamente que a única boa oportunidade era a prestação de amor na pista de gelo. Em primeiro lugar, tentei tornar o meu aspecto muito adequado à prática do cortejar. Dediquei mais tempo e cuidado a pentear-me, observava meticulosamente o asseio das minhas roupas, punha o boné de peles com elegância em parte sobre a testa e consegui que as minhas irmãs me emprestassem um cachecol de seda, de um rosa avermelhado. Ao mesmo tempo comecei a cumprimentar delicadamente as raparigas e a notar que elas reparavam nesta homenagem inusitada com um certo espanto, sim, mas não sem agrado.
Muito mais difícil foi para mim o primeiro contacto, porque em todo a minha vida eu nunca tinha "engatado" uma rapariga. Tentei espreitar os meus amigos nessa primeira cerimónia. Uns faziam apenas uma vénia e estendiam a mão, outros gaguejavam qualquer coisa que não se percebia, mas a grande maioria usava a elegante frase: "Dá-me a honra?". Esta fórmula foi a que se impôs e eu treinei-a quando em casa, no meu quarto, fazia uma vénia diante do fogâo, pronunciando as solenes palavras.
Tinha hegado o dia do difícil primeiro passo. Já ontem tinha tido ideias de fazer uma declaração, mas voltei para casa desencorajado, sem ter ousado sequer. Hoje prometi a mim mesmo fazer impreterivelmente o que eu tanto receava e desejava-o com o coração a bater e numa aflição enorme, como se fosse um criminoso, dirigi-me para a pista de gelo e creio que tinha as mãos a tremer quando estava a por os patins. E então lancei-me no meio da multidâo, desenhando uma larga curva e esforçando-me por dar ao meu rosto um pouco da minha segurança habitual e da minha autoconfiança. Percorri duas vezes toda a longa pista em tempo record; o ar cortante e o movimento veloz fizeram-me bem.
De repente, mesmo debaixo da ponte, fui, cheio de raiva, de encontro a alguém e caí desamparado para o lado. Mas sobre o gelo estava sentada a linda Emma, visisvelmente a dominar a dor, e ela olhou para mim cheia de reprovação. Diante dos meus olhos todo o mundo andava à roda.
Estávamos agora de pé, em frente um do outro, amedrontados e perplexos, e sem dizer palavra. O casaco de peles, o rosto e o cabelo da linda raparigaatordoavam-me por estarem tão estranhamente perto. Esforcei-me sem conseguir lembrar-me de uma desulpa qualquer e continuei a ter o boné amarfanhado na mão. E de repente, enquanto me parecia ter os olhos enevoados, fiz mecanicamente uma profunda vénia e murmurei: "Dá-me a honra?"
Ela não disse nada, mas pegou-me nas mãos com os seu dedos delicados, e eu senti-lhes o calor através da luva e senti-me desvanecido. Sentia-me tão bem como num sonho fantástico. Uma sensação de felicidade, vergonha, calor, prazer e perplexidade quase me roubou a respiração. Passámos bem um quarto de hora a patinar juntos. Então, delicadamente, numa paragem, ela retirou as mãos, disse "Muito obrigada!" e continuou sózinha, enquanto eu, em atraso, punha o boné, ficando ainda muito tempo no mesmo lugar. Só mais tarde é que reparei que durante todo aquele tempo ela não tinha dito uma única palavra.
O gelo derreteu e não pude repetir a minha tentativa. Foi a minha primeira aventura de amor. Mas passaram muitos anos até eu realizar o meu sonho e pôr a minha boca sobre a boca vermelha de uma rapariga.
Hermann Hesse, Contos de Amor
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