sexta-feira, 23 de dezembro de 2016
Buraco Negro
Não perguntem jamais a uma mulher capaz de arranjar-se em menos de duas horas ou com uma colecção de sapatos inferior a 100 pares se a vida tem sentido. Na melhor das hipóteses, o vosso corpo irá ser vítima de manifestações de vivo repúdio capazes de deitarem por terra as teorias idiotas que aludem a um sexo fraco, não por acaso o estado exacto em que se deverá encontrar a vossa genitália após semelhante comentário.
Prostrada diante do que parecia ser um poço ou um alçapão, embora as más línguas do costume assegurassem tratar-se apenas da abertura de uma donzela invulgarmente experiente em matéria de acasalamento, Agneta - cujos 15 minutos de higiene e preparação diárias, a par de um calçado mínimo, constituíam há muito uma fonte de embaraço insuportável junto das colegas e amigas -, chegara ao ponto exacto da existência em que sabia ser impossível admitir mais delongas.
Não mais,pensou enquanto fitava o buraco negro pela última vez, aceitaria ser vítima de comentários mordazes e soezes, olhares altivos, repreensões silenciosas, azedumes delicodoces ou gestos de desprezo subrepticiamente transformados em actos condescendentes.
Decidira, em suma, tornar-se uma nova mulher, cortar com o passado a direito, precipitando até si o fim como única forma de acautelar o seu futuro. E não se pode dizer que Agneta tenha decidido levianamente concretizar a missão que lhe permitiria antecipar o resto da eternidade.
Mais importante ainda: sem que para isso tivesse de pagar juros adicionais ou desembolsar somas inesperadas em gorgetas e luvas aos guardiões do Além, também conhecidos por Deuses ou, no caso de não terem encontrado vaga para este último cargo, coveiros.
Antes de avançar, absorvera com entusiasmo todos os manuais do suicídio, estudara-lhe os tiques com afinco, e concluíra que a melhor forma para desaparecer sem deixar rasto seria atirar-se sem remissão para o poço mais fundo que encontrasse, a solução eficaz para apaziguar as saudades uterinas que a consumiam.
Como suava em abundância só de admitir a possibilidade de ter como companhia na hora do estertor - momento cuja solenidade apenas encontra paralelo no acto de expurgar impurezas em posição fecal - uma chata de antanho capaz de dissertar longamente sobre as 387 maneiras de cozinhar sardinha em lume brando, quis certificar-se de que mais ninguém se encontrava no loal.
"Que pior destino existe do que passar os derradeiros instantes da vida ao lado de alguém tão desesperado como nós?", meditou, se disso fosse capaz.
Agneta aproximou-se da construção rústica, erguida no cimo de uma encosta verdejante. Era um poço sólido, altivo na indiferença com que reagia à presença dos humanos, mas apenas um dos muitos que em tempos abastaciam sedentas comunidades e hoje pouco mais serviam do que mictório de emergência.
Teria sentido imediata pena do desgraçado do poço, ao imaginá-lo a tresandar a fezes e urina, se não se encontrasse também numa posição delicada.
Uma brisa quase imperceptível fez oscilar os seus longos cabelos castanhos, envoltos numa fina película prateada destinada a amparar a queda que se antevia fatal. Imaginou o seu belo corpo (imaginário, claro está) desfeito no fundo do poço e não conteve um sorriso ao antecipar a reacção das colegas quando tivessem conhecimento das consequências da sua crueldade.
Sentia-se tão leve que se julgava capaz de voar. Tentou mesmo erguer-se do solo uns centímetros apenas e, por um microduodécimo de segundo, jurou ter experimentado uma sensação de liberdade id~entica à dos pássaros que, lá nos idos dos céus, nos vigiam os passos, alvejando os incautos com a sua merda fresca.
O contacto brusco com o solo, a dor que de imediato se apoderou de si com o rompimento do tendão, recordou-a, todavia, da lamentável condição terrena de que ainda dispunha. Mas não por muito mais tempo.
Contemplou o cenário idílico à sua volta uma vez mais. A harmonia, quietude e comunhão reinantes aborreciam-na de morte, pelo que resolveu ir ao seu encontro de imediato, dispensando intermediários.
Aclarou a voz para que ninguém menos avisado atrapalhasse os seus planos e alegasse desconhecimento, quando embatesse com estrondo no fundo do poço. Não queria que nada falhasse.
-Está alguém aí? - atreveu-se a perguntar, com o grunhido mais doce de que era capaz.
- Aííí-ííí-ííí-ííí...- devolveu o poço, num eco interpretado por Agneta como uma manifestação de dor.
Assustou-se. Afinal, a paz que procurava não era um dado adquirido, como inicialmente pensara ao escolher o local mais isolado que conhecia para consumar o destino.
-Sim? - replicou, cada vez mais receosa. Fechou os olhos com muita força e cerrou os punhos, como fazia em miúda quando desejava ardentemente que se concretizasse um sonho impossível. A dor que sentia nas mãos laceradas de tanto as arranhar pouco significava quando comparada com a desilusão de constatar a inutilidade dos manuais de auto-ajuda-me, dos quais retirara a teoria idiota de que basta acreditarmos em algo para que tal se torne real.
_Siiim-iiim-iiim-iiim... - tornou a ouvir.
-Vou entrar, mas não me faças mal, ok?
-Okay-kay-kay-kay... - reverberou o dito culo até ao infinito, ou quiçá mais além ainda.
Foi nesse exacto instante que percebeu quâo inútil era a sua tentativa de aniquilamento. Jamis conseguiria fugir de si, dos outros, de quem quer que fosse. Por mais que julgasse libertar-se deles, estaria para sempre confinada aos seus desígnios e insultos, que, mesmo desprovidos de som, ecoavam com uma intensa reverberação no seu alienado cérebro.
Tudo lhe soava tão claro agora comouma manhã de nevoeiro que se dissipa por ordem superior e nos revela o esplendor da criação divina em toda a extensão: do bólide prateado que refulge no pôr do sol, ofuscando à sua passagem todos os que se vangloriam das virtudes da ética, do iogurte de dos seus derivados, à mansão altaneira que propaga a felicidade sem exigir em troa o cumprimento de normas austeras.
Agneta aproximou-se do velho poço, já farto das indefinições da gordalhufa, que entretanto se despira na totalidade, deixando a descoberto volumosas pregas de carne em zonas anatómicamente impossíveis que as roupas largas conseguiam miraculosamente ocultar.
E de súbito....
Sérgio Almeida
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Pois e, as mulheres sao muito vaidosas , eu já tive muitos sapatos ,muitas botas,e muita roupa ,um bom carro ,uma boa casa , mas infelizmente esta doença , levou-me a pensar em coisas mais úteis, e menores ,hoje dou valor as coisas simples da vida ,Lutei muito para nao cair no BURACO NEGRO , mas aprendi muitas coisas que a vida me negou , em troca deu-me uma doença sem cura a ELA ,continuo lutando para nao me deixar cair no BURACO NEGRO , a minha vida e muito sofrida , nao só pela doença !!! mas vivo só dentro de quatro paredes ,num lar ,difícil viver, tento nao me deixar cair no BURACO NEGRO, ele existe em todo o ser humano ,uns caem mesmo, outros tentam sair ,e saem , outros levam anos para vir para cima ,tenho excelentes amigas , que tentam tudo para eu nao cair no BURACO NEGRO, muito obrigadas a todos\as que me dão força para eu resistir ,e nao cair no BURACO NEGRO ,
ResponderEliminarM Fátima Oliveira