sábado, 31 de dezembro de 2016

CONTOS POPULARES CHINESES - O terceiro filho e o governador - Continuação

...a rapariga ficou timidamente em frente dele.
    — Linda menina, és tão boa em cozinhar para mim todos os dias...Quem és tu e de onde vieste?
    — Não tens que me agradecer - respondeu a jovem. — O que eu faço por ti não é nada. Sou a filha do Rei Dragão e estou aqui em agradecimento por teres salvo o meu irmão.
    Depois disto, tornaram-se marido e mulher, e toda a gente vinha de longe e de perto para os felicitar e verem com os seus olhos a novidade do terceiro filho ter casado com a filha do Rei Dragão.
    Um dia, um lacaio do governador do condado passou por ali e imediatamente foi contar ao seu senhor ter visto uma linda rapariga que viera do palácio do Rei Dragão. Daí em diante, muitos aborrecimentos esperavam o jovem casal. Poucos dias depois, o governador ordenou que o terceiro filho comparecesse perante ele.
    — Em todas as aldeias que estão sob o meu governo quer sejam pequenas ou grandes, tudo se faz segundo as minhas ordens - disse o tirano ao terceiro filho. — E as minhas ordens são que me envies a tua mulher dentro de três dias. Se o não fizeres, mando cortar-te a cabeça!
     — Podes pedir-me tudo menos a minha mulher - respondeu o jovem esposo com firmeza.
    O governador contraiu o rosto num sorriso perverso.
    — Posso pedir-te tudo, disseste tu? Está muito bem. Já que és pescador, dentro de três dias, traz-me cento e vinte carpas, todas do mesmo tamanho, todas do mesmo tom de vermelho e pesando cada uma exatamente 300 gramas.
    Quando chegou a casa, o terceiro filho estava muito preocupado e contou à mulher o que o governador exigirá. Mas ela confortou-o.
    — Não te preocupes! Eu trato de tudo!
    E logo ali, recortou numa folha de papel encarnado cento e vinte carpas do mesmo tamanho; deitou-as numa vasilha que encheu de água fria e puf! As cento e vinte carpas de papel vermelho transformaram-se em verdadeiras carpas, todas da mesma cor e do mesmo tamanho. Nadavam à volta da vasilha e eram tão bonitas que o terceiro filho não podia deixar de olhar para elas de boca aberta, agradavelmente surpreendido. Porém, teve de as ir entregar ao governador. ... (CONTINUA)

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

CONTOS POPULARES CHINESES -O terceiro filho e o governador (3ª parte)

...pede-lhe uma galinha branca.
    Na manhã seguinte, o terceiro filho foi despedir-se do Rei Dragão. O rei, muito amavelmente, apontou para várias salas cheias de ouro e prata e disse:
    — Leva o que quiseres das coisas preciosas que aqui estão!
    O terceiro filho olhou para as barras de ouro cintilantes, para a prata, para as pérolas e jóias, mas lembrando-se do que o filho do rei lhe dissera, respondeu simplesmente:
    — Vivo sózinho e tenho o suficiente para comer e vestir, Rei Dragão, mas às vezes sinto-me só. Se não te importasses, gostava de ter uma galinha branca para me fazer companhia.
    O Rei Dragão reflectiu no pedido por momentos, cofiando a sua barba branca, e por fim ofereceu a galinha ao terceiro filho.
    O terceiro filho logo a meteu numa gaiola. De regresso a casa, continuou a ir todos os dias à pesca e a vender o produto do seu trabalho. Mas todos os dias, quando voltava, tinha belos manjares e arroz fumegante à sua espera na mesa!
    Ao princípio, pensou que talvez fossem os vizinhos que tivessem cozinhado para ele. Mas quando lhes foi agradecer, eles mostraram-se muito surpreendidos, pois nenhum deles tinha cozinhado nada. O terceiro filho estava tão intrigado que um dia ficou em casa para descobrir. Mas ninguém apareceu a cozinhar para ele. No dia seguinte, como de costume, foi à pesca. E, quando regressou, tinha outra vez a comida na mesa. Pensou e tornou a pensar quem seria que lhe preparava as refeições, a fim de lhe poder agradecer. No dia a seguir, fingiu apenas que ia à pesca e, a meio caminho, voltou para trás. Espreitou através duma frincha da porta e viu uma rapariga, com uma saia garrida é uma blusa branca, em frente do fogão a cozinhar! Não se pode conter e exclamou:
    — Como lhe poderei agradecer, linda menina?
    Mal o ouviu, ela bateu as palmas, transformou-se repentinamente na galinha branca e escondeu-se na gaiola.
    O terceiro filho nada mais podia fazer senão esperar pelo dia seguinte. Fingiu novamente que ia pescar. Voltou para trás a meio caminho, e espreitou. Daí a pouco, viu a galinha branca transformar-se numa linda rapariga. Abriu logo a porta de par em par. Sem poder voltar para a gaiola, a rapariga ficou timidamente em frente dele. .... (CONTINUA)
 

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

O TERCEIRO FILHO E O GOVERNADOR (Continuação -2ª parte de 4) Conto popular chinês -

... Houve, porém, um dia em que foi vender peixe sem levar a carpa dourada.
    Quando regressou, ela tinha desaparecido! Ficou a olhar para o vaso de cobre vazio e as suas lágrimas correram para dentro dele. Desse dia em diante, passou a sentir-se infeliz e só.
    Um dia, estava a pescar no rio, debaixo de uma figueira. A brisa fresca acariciava-o e o rio corria tão vagarosamente que ele adormeceu. Mas, de repente, acordou...Esfregou os olhos e viu um jovem da sua idade inclinado para ele, a bater-lhe no ombro e a dizer-lhe afectuosamente:
    — Não me conheces, meu irmão por juramento?
    O terceiro filho achou aquilo muito estranho porque não tinha jurado ser irmão de ninguém. Quem lhe poderia dar aquele tratamento?
    — Então não me conheces? — disse de novo o estrangeiro. — Sou teu íntimo amigo e tu és o meu benfeitor.
    O terceiro filho estava mais intrigado do que nunca e não sabia o que havia de responder. Por fim, o estrangeiro disse:
    — Eu sou a carpa dourada que tu salvaste e de quem trataste tão bem.
    Então, o terceiro filho começou a compreender. Ficou também a saber que a carpa dourada era o filho do Rei Dragão, senhor dos habitantes do mar. Naquele dia, tinha tomado a forma duma carpa dourada para andar cá fora a brincar e aquele peixe enorme tinha-o engolido. E fora graças ao terceiro filho que ele se tinha salvo.
    — Poupaste-me a vida, guardaste-me e alimentaste-me. Nem eu nem o meu pai jamais esqueceremos a tua bondade. Vim convidar-te para nos fazeres uma visita — disse ainda o filh
o do Rei Dragão.
    — Tenho muito prazer em ir contigo — respondeu o terceiro filho — . Mas como poderei andar debaixo de água?
    — Fecha os olhos e segura-te bem aos meus ombros! — disse o filho do Rei Dragão.
    O terceiro filho seguiu as instruções e quando abriu os olhos viu uma estrada muito larga que se estendia diante de si. Pouco depois chegavam ao palácio do dragão, com as suas colunas de cristal vermelho, paredes de cristal amarelo e telhas de cristal verde. Como as diferentes cores do cristal tornavam bonito o palácio!
    O Rei Dragão recebeu o terceiro filho com muita amabilidade e deu-lhe o melhor quarto e a melhor comida. O filho levou-o a passear no jardim onde havia muitas flores e frutos estranhos. Havia nozes de lichia sem caroço, doces como o mel, 'olhos de dragão' do tamanho duma chávena de chá e pêssegos sumarentos. Havia ainda no jardim bananeiras sempre verdes e muitas outras coisas maravilhosas que ele nunca tinha visto na terra.
    O terceiro filho já vivia há mais de um mês no palácio quando, um dia, disse ao filho do Rei Dragão:
    — Estou infinitamente grato pela tua amável hospitalidade, meu irmão! Mas como não tenho mais ninguém que olhe pela minha casa, devo partir.

  1.     — Se é realmente necessário, parte — concordou o filho do Rei Dragão. — Mas vem visitar-nos mais vezes. Outra coisa ainda: se o meu pai quiser dar-te um presente, pede-lhe uma galinha branca.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

CONTOS POPULARES CHINESES - O Terceiro filho e o governador ( uma história do povo Chuang)

    Era uma vez um velho muito pobre que, para sustentar a família, fabricava em bambú toda a espécie de objectos úteis.
    Este velho tinha três filhos. Prestes a morrer, chamou-os e disse-lhes:
   — Toda a gente devia aprender um ofício. Eu vivi apenas para vos criar. Agora vocês têm de se governar sozinhos.
    Dito isto, o velho deu o último suspiro. Com o pouco dinheiro que deixou, os três filhos compraram um caixão e fizeram-lhe um enterro de acordo com os costumes.
    Depois do funeral, só lhes restavam três moedas. Cada um dos filhos ficou com uma.
    O mais velho era um vadio. Não fazia nada o dia inteiro. Pouco tempo depois da morte do velho, já tinha gasto a moeda e acabou por morrer de fome, tão preguiçoso era para fazer qualquer trabalho.
    O segundo filho era habilidoso. Aprendeu a cultivar plantas, comprou sementes com a moeda que lhe coubera e tornou-se um bom jardineiro. Mesmo assim, dificilmente ganhava para viver.
    O terceiro filho era ainda muito jovem, mas não se cansava de pensar no que havia de fazer para ganhar a vida.
    Um dia, avistou uns pescadores à beira do rio. Observou-os com toda a atenção até aprender o seu ofício. Pegou então na moeda que o pai lhe deixara, comprou dois anzóis e passou a ir pescar para o rio todos os dias. Apanhava sempre muito peixe e vendia-o. Deste modo, ganhava o suficiente para se alimentar e poupava ainda algum dinheiro para comprar as coisas de que gostava. Tornou-se entretanto um bom pescador.
    Mas um dia não apanhou um único peixe, embora tivesse ficado durante muito tempo sentado à beira do rio. Estava ele a pensar na sua pouca sorte, quando olhou para a água e viu um enorme peixe, com os olhos salientes e a cauda a abanar, que engolia, em grandes tragos, todos os peixes que ele podia ter pescado. O terceiro filho ficou tão furioso que agarrou no arpão e atirou-o ao peixe. Trespassado, o peixe virou-se com estrondo e, enquanto ia ao fundo, bolhas de ar subiam à superfície. O terceiro filho, puxando a corda que estava presa ao arpão, trouxe-o para a margem.
    Nesse dia não apanhou mais nada senão aquele enorme peixe. Decidiu por isso cozinhá-lo para si próprio. Quando lhe abriu a barriga encontrou muitos peixes pequeninos lá dentro e, entre eles, uma linda carpa dourada. Ainda estava viva porque as suas guelras abriam e fechavam. O terceiro filho teve pena daquele animal tão bonito e pô-lo num vaso de cobre que encheu com água limpa. A carpa dourada depressa começou a movimentar-se e a abanar a cauda. Quanto mais o terceiro filho a olhava, mais a admirava e gostava dela. Resolveu conservá-la e alimentava-a com vermes, lentilhas e algas.
    A carpa dourada cada dia se tornava mais bonita. O terceiro filho gostava tanto dela que a levava para toda a parte quer fosse pescar quer fosse ao mercado ou ver um jogo.
    Houve, porém, um dia em que foi vender peixe sem levar consigo a carpa dourada. ....(CONTINUA)

Conselhos de mocho não chegam ao chão

Conselhos de mocho não chegam ao chão
Uma vez o coelho e o rato encontraram-se.
— Tu tens os dentes da frente um bocado saídos — observou o rato para o coelho.
— Mas tu ainda tens mais — respondeu-lhe o coelho, e deu uma corrida e foi-se embora.
O rato ficou sozinho, mas por pouco tempo. Apareceu ao pé dele uma lagartixa:
— Tu tens a cauda muito comprida — observou o rato para a lagartixa.
— Mas tu ainda tens mais — respondeu-lhe a, lagartixa, e deu meia volta e desapareceu.
O rato ficou outra vez sozinho, mas por pouco tempo.
Apareceu ao pé dele uma rã.
— Tu és muito pequena e insignificante — observou o rato para a rã.
— Mas tu ainda és mais — respondeu-lhe a rã, e deu um salto e fugiu.
O rato ficou, mais uma vez, sozinho. Que tempos!
Deu um suspiro e pensou:
— Ninguém se chega a mim. Não consigo fazer amigos.
Porque será?
Como o rato pensava em voz alta, o mocho, que estava empoleirado numa árvore perto e a tudo tinha assistido, respondeu-lhe:
— Não fazes amigos, porque não olhas a bem para eles. Tenta proceder de outra maneira e verás os resultados.
O rato fechou os olhos e pensou:
— Quando encontrar o coelho vou dizer-lhe que gostava de ter as orelhas tão compridas como as dele.
Como pensava em voz alta, o mocho ouviu tudo e agitou-se, no seu poleiro. Estava nervoso e com vontade de intervir, mas o rato continuava:
— E quando encontrar a lagartixa vou dizer-lhe que gostava de arrastar a barriga pelo chão como ela arrasta.
Mais uma vez o mocho se enervou e ia falar, mas o rato prosseguia os seus pensamentos:
— Quando encontrar a rã vou dizer-lhe que gostava de ter a pele escorregadiço e fria como a dela.
O mocho não podia aguentar mais disparates e indignou-se:
— És tolo, duas vezes tolo, rato! Há elogios que matam. Não podes valorizar o que os teus amigos consideram defeitos. Vê se te emendas ou nunca encontrarás quem goste de andar contigo.
O rato virou-se para ele e apreciou-o em silêncio.
Depois, pensou em voz alta:
— O senhor mocho dá conselhos com muito acerto, apesar de ser tão feio.
Dito isto, foi-se embora.
Ficou o mocho a pensar, também em voz alta:
— Este rato não tem emenda. Se em vez de ter estado a aturá-lo o tivesse comido, eu tinha feito melhor. E tinha prestado um grande serviço ao resto da bicharada, porque este rato por onde passar só vai causar aborrecimentos. Eu é que fui parvo em poupá-lo, em vez de papá-lo.
E se os mochos gostam de ratos! Mas, desta feita, o jantar já ia longe.
António Torrado


terça-feira, 27 de dezembro de 2016

A Árvore

A Árvore – Sophia de Mello Breyner

Era uma vez – em tempos muito antigos, no arquipélago do Japão – uma árvore enorme que crescia numa ilha muito pequenina.
Os japoneses têm um grande amor e um grande respeito pela Natureza e tratam todas as árvores, flores, arbustos e musgos com o maior cuidado e com um constante carinho.
Assim, o povo dessa ilha sentia-se feliz e orgulhoso por possuir uma árvore tão grande e tão bela: é que em nenhuma outra ilha do Japão, nem nas maiores, existia outra árvore igual. Até os viajantes que por ali passavam diziam que mesmo na Coreia e na China nunca tinham visto uma árvore tão alta, com a copa tão frondosa e bem formada.
E, nas tardes de Verão, as pessoas vinham sentar-se debaixo da larga sombra e admiravam a grossura rugosa e bela do tronco, maravilhavam-se com a leve frescura da sombra, o suspirar da brisa entre as folhagens perfumadas.
Assim foi durante várias gerações.
Mas, com o passar do tempo, surgiu um problema terrível, e por mais que todos meditassem e discutissem, ninguém era capaz de arranjar uma boa solução.
Porque, ao longo dos anos, a árvore tinha crescido tanto, os seus ramos tinham-se tornado tão compridos, a sua folhagem tão espessa e a sua copa tão larga que, durante o dia, metade da ilha ficava sempre à sombra.
De maneira que metade das casas, das ruas, das hortas e dos jardins nunca apanhava sol.
E, na metade ensombrada, as casas estavam a ficar húmidas, as ruas tinham-se tornado tristes, as hortas já não davam legumes, os jardins já não davam flor. E a gente que ali morava andava sempre pálida e constipada.
E, à medida que a sombra da árvore crescia, crescia também a perturbação.
As pessoas gemiam:
— Que havemos de fazer? Que havemos de fazer?
* * *
Até que foi decidido a população reunir-se toda em conselho para examinar bem o problema e decidir o remédio que devia dar-lhe.
Discutiram durante muitos dias e, depois de todos terem falado, chegou-se à triste conclusão de que era preciso cortar a árvore.
Houve choros, lamentações, gemidos.
A árvore era bela, antiga e venerável. Fazê-la desaparecer era um acto que não só entristecia os habitantes da ilha mas que também os assustava.
Mas não havia outro remédio e quase todos acabaram por concordar com o corte.
No lugar onde antes ela se erguia, plantaram um pequeno bosque de cerejeiras, pois as cerejeiras nunca crescem muito.
* * *
Abater a árvore foi difícil e toda a gente teve de ajudar.
Mas, depois de cortada, ela ocupava tanto espaço que a ilha ficou quase sem lugar para mais nada. Por isso começaram a desfazê-la: primeiro cortaram os ramos e as pernadas e a sua madeira foi distribuída entre todos, para que cada um pudesse fabricar alguma coisa que lhe lembrasse a árvore tão amada.
Alguns fabricaram pequenas mesas, outros, varandas para as suas casas, outros, caixilhos para os biombos, outros, caixas, tabuleiros, tigelas, colheres, pentes e ganchos para as mulheres espetarem no cabelo.
No fim ficou só o enorme e grosso tronco nu, deitado através da ilha.
Então começaram a chegar viajantes e armadores que queriam aquela óptima madeira para fabricar barcos.
Mas a população não quis. Reuniram todos outra vez em conselho e decretaram:
— Os habitantes desta ilha não querem separar-se da sua árvore que, antes de crescer demais, lhes deu tanta alegria. Vamos nós próprios construir o nosso barco.
E assim foi. Depois da chuva do Outono, deixaram o tronco secar durante longos meses e, logo que viram que a madeira já estava bem seca, meteram mãos à obra.
E, como são um povo muito inteligente, os japoneses, que trabalham muito bem, muito depressa, com muito esmero e são óptimos carpinteiros, construíram rapidamente uma grande e linda barca toda esculpida e pintada de muitas cores.
Então houve uma grande festa e a barca foi lançada ao mar.
À noite houve fogo de vista e em todas as ruas e praças se acenderam balões de papel, azuis, amarelos e vermelhos.
* * *
D’aí em diante a vida do povo daquela terra passou a ter uma vida muito mais animada e variada e quase todos se tornaram muito mais ricos.
Antes, como a ilha era tão pequena, os seus habitantes só possuíam pequenos barcos de pesca e só podiam navegar até às ilhas vizinhas.
Quando alguém precisava de ir mais longe tinha que arranjar um lugar em certos barcos maiores que de vez em quando por ali passavam.
Agora tudo tinha mudado. Agora, graças à grande barca, navegavam constantemente de ilha em ilha davam grandes passeios pelo mar e faziam óptimos negócios.
Às vezes nas noites calmas de Verão ou de Outono grupos de pessoas embarcavam e iam até ao largo ver a lua cheia sobre o mar. Ou então rondavam a ilha junto à costa, até ao extremo sul, para irem ali admirar os recortes negros dos rochedos sobre a claridade clara e azulada do luar.
Depois, no Inverno seguinte comentavam estes passeios, comparavam tudo o que tinham visto, discutiam qual fora a mais bela noite, a mais bela paisagem.
* * *
Entretanto, à medida que o tempo ia passando, as cerejeiras que tinham plantado iam crescendo e embelezando.
Por isso a gente da ilha passou a celebrar, todos os anos, a festa da cerejeira em flor.
Quando acabava o Inverno e começava a surgir a Primavera tudo se animava.
Os pedreiros, os tanoeiros e os carpinteiros vinham trabalhar para o ar livre e riam e cantavam enquanto esculpiam, serravam, martelavam.
Havia grande azáfama e pelas ruas passavam pessoas muito apressadas: iam a correr às lojas de tecidos comprar kimonos de Primavera para vestirem quando chegasse o dia em que já pudessem ir admirar o primeiro desabrochar das flores.
E nas ruas, nos jardins, nos campos, os marmeleiros, as macieiras, as cerejeiras já estavam carregadas de botões fechados.
No centro da povoação aparecia então o macaco amestrado, vestido com um casaquinho azul e acompanhado pelo seu dono. E em redor juntavam-se as crianças e adultos para admirarem as habilidades do animal sábio.
E as crianças ficavam mudas de espanto quando aparecia um grande leão de papel que vinha pela rua fora num andar baloiçado, acompanhado por dois homens vestidos com kimonos amarelos. Passavam por todas as ruas e por fim paravam debaixo dos ramos das cerejeiras.
Então os homens do kimono amarelo começavam a rufar os tambores e o leão começava a dançar. E um dos homens cantava:
Já dança o leão
Debaixo da cerejeira
Ao som dos tambores
O seu bailar faz abrir
Mais depressa as flores
E, no dia seguinte, nos ramos das cerejeiras, as pequenas flores cor de rosa estavam todas abertas.
* * *
Assim, durante muitos anos, a vida naquela ilha correu com muita alegria e animação.
Mas apesar dessa alegria, apesar dos bons negócios e dos grandes passeios, todos se lembravam com saudade da velha árvore.
— Como era alta e bela! — diziam.
— Como a sua sombra era perfumada!
— Como era doce e leve o sussurrar da brisa nas suas folhas!
— Como a sua copa era redonda e bem formada!
— Como as suas folhas eram verdes e bem desenhadas!
— Como era tão suave a frescura debaixo dos seus ramos, nas manhãs de Verão!
E, assim, entre palavras e pensamentos, a árvore nunca era esquecida.
* * *
E os anos foram passando.
Até que os marinheiros e os calafates descobriram que estava a acontecer uma grande desgraça:
A madeira da quilha da grande barca tinha começado a apodrecer.
— Ai de nós! — choravam os habitantes. — Não vamos dar mais passeios pelo mar. Nas noites de lua cheia, não vamos visitar mais as outras ilhas, não vamos fazer mais negócios.
Mas os comerciantes sossegaram-nos.
— Durante estes anos — disseram eles — graças à nossa grande barca, andámos a navegar de ilha em ilha, de porto em porto, a comprar e a vender, e fizemos negócios tão bons que juntamos muito dinheiro. Por isso, como aqui não há outra árvore enorme, e as árvores que agora temos fazem muita falta se forem cortadas, estamos dispostos a ir às outras ilhas comprar boa madeira. E todos juntos podemos construir outra grande barca.
A população aplaudiu o discurso e concordou com o projecto e daí a poucos meses a barca nova ficou pronta e logo a puseram a flutuar.
Então, a barca velha foi arrastada para a praia. O povo cercou-a em silêncio com grande tristeza, e os carpinteiros e os calafates examinaram-na tábua por tábua.
A madeira do casco, do convés e dos bancos estava quase toda semi-apodrecida e só servia para queimar. Mas o mastro grande, que tinha sido tirado do cerne da velha árvore, continuava são e bem conservado.
— Temos que fazer com este mastro alguma coisa que nos lembre a nossa árvore antiga e a nossa barca — disse o chefe da ilha.
Depois de muito pensar resolveram fazer uma biwa, que é uma espécie de guitarra japonesa.
Quando a obra ficou pronta, a população reuniu-se na praça principal e sentaram-se em silêncio em redor do melhor músico da ilha para ouvirem o som da biwa.
Mas, mal os dedos do músico fizeram soar as cordas, de dentro da biwa ergueu-se uma voz que cantou:
A árvore antiga
Que cantou na brisa
Tornou-se cantiga
Então, todos compreenderam que a memória da árvore nunca mais se perderia, nunca mais deixaria de os proteger, porque os poemas passam de geração em geração e são fiéis ao seu povo.
Sophia de Mello Breyner Andresen
A Árvore
Porto, Liv. Figueirinhas, 1987

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

CREIO NOS ANJOS que ANDAM pelo MUNDO

creio nos anjos que andam pelo mundo,
creio na deusa com olhos de diamantes,
creio em amores lunares com piano ao fundo,
creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes;

creio num engenho que falta mais fecundo
de harmonizar as partes dissonantes,
creio que tudo é eterno num segundo,
creio num céu futuro que houve dantes,

creio nos deuses de um astral mais puro,
na flor humilde que se encosta ao muro,
creio na carne que enfeitiça o além,

creio no incrível, nas coisas assombrosas,
na ocupação do mundo pelas rosas,
creio que o amor tem asas de ouro.

amém.
Natália Correia

Poesia alegre...


Rancho das flores

Vinicius de Moraes
com música de J.S.Bach
da Cantata 147, Jesus, alegria dos homens

Entre as prendas com que a natureza
Alegrou este mundo onde há tanta tristeza
A beleza das flores realça em primeiro lugar
É um milagre do aroma florido
Mais lindo que todas as graças do céu
E até mesmo do mar
Olhem bem para a rosa
Não há mais formosa
É flor dos amantes
É rosa-mulher
Que em perfume e em nobreza
Vem antes do cravo
E do lírio e da Hortência
E da dália e do bom crisântemo
E até mesmo do puro e gentil malmequer
E reparem no cravo o escravo da rosa
Que é flor mais cheirosa
De enfeite sutil
E no lírio que causa o delírio da rosa
O martírio da alma da rosa
Que é a flor mais vaidosa e mais prosa
Entre as flores do nosso Brasil
Abram alas pra dália garbosa
Da cor mais vistosa
Do grande jardim da existência das flores
Tão cheias de cores gentis
E também para a Hortência inocente
A flor mais contente
No azul do seu corpo macio e feliz
Satisfeita da vida
Vem a margarida
Que é a flor preferida dos que tem paixão
E agora é a vez da papoula vermelha
A que dá tanto mel pras abelhas
E alegra este mundo tão triste
No amor que é o meu coração
E agora que temos o bom crisântemo
Seu nome cantemos em verso e em prosa
Porém que não tem a beleza da rosa
Que uma rosa não é só uma flor
Uma rosa é uma rosa, é uma rosa
É a mulher rescendendo de amor

No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra 
tinha uma pedra no meio do caminho 
tinha uma pedra 
no meio do caminho tinha uma pedra. 
Nunca me esquecerei desse acontecimento 
na vida de minhas retinas tão fatigadas. 
Nunca me esquecerei que no meio do caminho 
tinha uma pedra 
tinha uma pedra no meio do caminho 
no meio do caminho tinha uma pedra
 
En Revista de Antropofagia, 1928
Incluido en Alguma poesia (1930)

 

uma poesia mágica....


UMA PERFEIÇÃO DE CÃO
Conheci um cão
Que falava
Que escutava
Que cantava
Que brincava
Que ladrava
Que fazia o pino
E que era um grande dançarino.
Que jogava à bola
Que perdia
Que ganhava.
Que estudava
E que andava
Comigo na escola.
E que tal?
Era ou não
Uma perfeição de cão?
Não acreditam?
Fazem mal.
Era um cão
De imaginação...

Maria Cândida Mendonça, O Livro do Faz-de-Conta