quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Revolução

Manhãzinha cedo, senti acordar-me o sopro da voz ciciada de minha mulher: - 0 Fafe telefonou de Cascais, ... Lisboa está cercada por tropas… Refilo, rabugento: - Hã? (...) Levanto-me preparado para o pesadelo de ouvir tombar pedras sobre cadáveres. Espreito através da janela. Pouca gente na rua. Apressada. Tento sintonizar a estação da Emissora Nacional. Nem um som. Em compensação o telefone vinga-se desesperadamente. Um polvo de pânico desdobra-se pelos fios. A campainha toca cada vez mais forte. Agora é o Carlos de Oliveira. - Está lá? Está lá? É você, Carlos? Que se passa? Responde-me com uma pergunta qualquer do avesso. Às oito da manhã o Rádio Clube emite um comunicado ainda pouco claro: - Aqui, Posto de Comando das Forças Armadas. Não queremos derramar a mínima gota de sangue. De novo o silêncio. Opressivo. De bocejo. Inútil. A olhar para o aparelho. Custa-me a compreender que se trate de revolução. Falta-lhe o ruído, (onde acontecerá o espectáculo?), o drama, o grito. Que chatice! A Rosália chama-me, nervosa: - Outro comunicado na Rádio. Vem, depressa. Corro e ouço: - Aqui o Movimento das Forças Armadas que resolveu libertar a Nação das forças que há muito a dominavam. Viva Portugal! Também pede à policia que não resista. Mas Senhor dos Abismos!, trata-se de um golpe contra o fascismo (isto é: salazismo-caetanismo). São dez e meia e não acredito que os «ultras» não se mexam, não contra-ataquem! (...) A poetisa Maria Amélia Neto telefona-me: «Não resisti e vim para o escritório». Os revoltosos estão a conferenciar com o ministro do Exército. Na Rádio a canção do Zeca Afonso: Grândola, vila morena ... Terra da fraternidade... 0 povo é quem mais ordena... Sinto os olhos a desfazerem-se em lágrimas. De súbito, aliás, a Rádio abre-se em notícias. 0 Marcelo está preso no Quartel do Carmo. A polícia e a Guarda Republicana renderam-se. 0 Tomás está cercado noutro quartel qualquer. E, pela primeira vez, aparece o nome do General Spínola. Novo comunicado das Forças Armadas. 0 Marcelo ter-se-á rendido ao ex-governador da Guiné. (Lembro-me do Salazar: «o poder não pode cair na rua»). Abro a janela e apetece-me berrar: acabou-se! acabou-se finalmente este tenebroso e ridículo regime de sinistros Conselheiros Acácios de fumo que nos sufocou durante anos e anos de mordaças. Acabou-se. Vai recomeçar tudo. A Maria Keil telefonou. 0 Chico está doente e sozinho em casa. Chora. (Nesta revolução as lágrimas são as nossas balas. Mas eu vi, eu vi, eu vi! (...) Antes de morrer, a televisão mostrou-me um dos mais belos momentos humanos da História deste povo, onde os militares fazem revoluções para lhes restituir a liberdade: a saída dos prisioneiros políticos de Caxias. Espectáculo de viril doçura cívica em que os presos... alguns torturados durante dias e noites sem fim.... não pronunciaram uma palavra de ódio ou de paixões de vingança. E o telefone toca, toca, toca... Juntámos as vozes na mesma alegria. (...) Saio de casa. E uma rapariga que não conheço, que nunca vi na vida, agarra-se a mim aos beijos. Revolução. José Gomes Ferreira Poeta Militante III - Viagem do Século Vinte em mim, Lisboa, Moraes Editores, 1983

4 comentários:

  1. Pois e , fizemos uma revolução ,com cravos ,sem sangue ,nao foi uma revolução por uma religião
    M Fátima Oliveira

    ResponderEliminar
  2. Já agora uma curiosidade: A revolução de 1974 é conhecida por ter sido neutra, e uma acção militar pacífica. No entanto, poucos sabem que tal esteve perto de não ser assim.

    Numa altura em que o Terreiro do Paço, em Lisboa, ficava repleto de civis e militares, a fragata Almirante Gago Coutinho era ordenada pelo Estado Maior da Armada para ficar junto do local. Ainda durante a manhã do dia 25, é ordenado ao Comandante que abrisse fogo sobre o local, uma ordem que não foi cumprida, pois havia muita gente no Terreiro do Paço, bem como vários barcos de transportes nas imediações.

    Após esta ordem, uma outra chegou para serem lançados tiros de salva para o ar. Como a fragata dispunha apenas de munições de exército, nem o Comandante, nem o Imediato quiseram cumprir a ordem, sobre a pena de criar o caos na zona.

    Muitos dos presentes chegaram a ser acusados de insubordinação por se terem recusado a cumprir uma ordem de superiores, mas o processo acabou por ser arquivado. Os verdadeiros factos relacionados com o incidente foram também conhecidos só vários anos depois.

    ResponderEliminar
  3. Outra curiosidade, desconhecida de muitos: Apesar de ser um golpe levado a cabo por militares, a revolução do 25 de abril ficou conhecida por ter sido pacífica. Mesmo assim, não é verdade que não tenham existido vítimas mortais durante a revolução: já no final do dia 25, quando os populares exigiam o fim da PIDE junto à sua sede, em Lisboa, os seus dirigentes disparam contra a população. Desse evento resultaram quatro mortos e vários feridos, as únicas vítimas mortais da revolução.

    ResponderEliminar
  4. Porquê do cravo como símbolo do 25 de Abril: As teorias são várias, e não se sabe se todas elas serão verdadeiras ou apenas histórias que têm sido contadas ao longo dos anos. Uma história parece ser constante: os cravos eram abundantes por serem da época e das flores mais baratas da altura.

    A história mais conhecida é a de Celeste Caeiro, a empregada de um restaurante próximo do Marquês de Pombal, em Lisboa, levava para casa um molho de cravos vermelhos. Os militares pediam aos populares comida ou cigarros, e Celeste ofereceu cravos por não ter mais nada. Os soldados acabaram por coloca-los no cano da espingarda.

    Outra das teorias afirma que terão sido as floristas no Rossio a iniciar a moda: sendo uma flor abundante, começaram a distribuir como forma de celebração.

    ResponderEliminar