terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

D. CAIO

D. CAIO
Era um alfaiate muito poltrão, que estava trabalhando à porta da rua; como ele tinha medo de tudo, o seu gosto era fingir de valente. Vai de uma vez viu muitas moscas juntas e de uma pancada matou sete. D'aqui em diante não fazia senão gabar-se:
— Eu cá mato sete de uma vez!
Ora o rei andava muito aparvalhado, porque lhe tinha morrido na guerra o seu general Dom Caio, que era o maior valente que havia, e as tropas do inimigo já vinham contra ele, porque sabiam que não tinha quem mandasse a combatê-las. Os que ouviram o alfaiate andar a dizer por toda a parte: «Eu cá mato sete de uma vez!» foram logo metê-lo no bico ao rei, que se lembrou de que quem era assim tão valente seria capaz de ocupar o posto de D. Caio. Veio o alfaiate à presença do rei, que lhe perguntou:
— É verdade que matas sete de uma vez?
— Saberá vossa majestade que sim.
— Então n'esse caso vais comandar as minhas tropas, e atacar os inimigos que já me estão cercando.
Mandou vir o fardamento de D. Caio e fê-lo vestir ao alfaiate, que era muito baixinho, e que ficou com o chapéu de bicos enterrado até às orelhas; depois disse que trouxessem o cavalo branco de D. Caio para o alfaiate montar. Ajudaram-no a subir para o cavalo, e ele já estava a tremer como varas verdes; assim que o cavalo sentiu as esporas botou à desfilada, e o alfaiate a gritar:
— Eu caio, eu caio!
Todos os que o ouviam por onde ele passava, diziam:
— Ele agora diz que é o D. Caio; já temos homem.
O cavalo que andava costumado às escaramuças, correu para o sitio em que andava a guerreia, e o alfaiate com medo de cair ia agarrado às crinas, a gritar como desesperado:
— Eu caio, eu caio!
O inimigo assim que viu vir o cavalo branco do general valente, e ouviu o grito: «Eu caio, eu caio!» conheceu o perigo em que estava e disseram os soldados uns para os outros:
— Estamos perdidos, que lá vem o D. Caio; lá vem o D. Caio.
E botaram a fugir à debandada; os soldados do rei foram no seu encalço e mataram-nos, e o alfaiate ganhou assim a batalha só em agarrar-se ao pescoço do cavalo e em gritar: «Eu caio.» O rei ficou muito contente com ele, e em paga da vitória deu-lhe a princesa em casamento, e ninguém fazia senão louvar o sucessor de D. Caio pela sua coragem.
(Porto)
Contos tradicionais do povo português, por Teófilo Braga

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

FRei João Sem cuidados

Era uma vez um rei que governava um país onde nunca acontecia nada de interessante. A única coisa de mais interesse era haver ali um homem que dizia não ter medo de nada. Esse homem chamava-se Frei João Sem Cuidados. O rei ouviu falar nesse homem e quis ver se isso era mesmo assim. Então, certo dia, mandou chamar Frei João ao palácio e disse-lhe: – Vou fazer-te três perguntas. Dou-te três dias para pensares nas respostas. Se daqui a três dias não souberes as respostas, mando-te matar! As perguntas são: Quanto pesa a lua? Quanta água tem o mar? Em que é que eu estou a pensar? Frei João sem Cuidados saiu do palácio a pensar nas respostas que tinha de dar ao rei. E, claro, ia bastante preocupado. No caminho para casa, cruzou-se com o moleiro. Diz-lhe o moleiro: – Olá, Frei João. Vejo-o tão triste! O que lhe aconteceu? O Frei João disse então ao moleiro a razão da sua preocupação: – É que o rei manda-me matar se eu não lhe disser três coisas: quanto pesa a lua, quanta água tem o mar e no que é que ele está a pensar…Quando ouviu isto, o moleiro riu-se: – Não tenha problemas, Frei João! Empreste-me a sua roupa e eu irei por si ao palácio dar as respostas ao rei. Passados três dias, o moleiro, vestido de Frei João, foi ao palácio responder ao rei. O rei perguntou-lhe: – Então, quanto pesa a lua? – Quatro quartos do seu peso. – Respondeu o moleiro. – E quanta água tem o mar? – É preciso que Vossa Majestade mande tapar todos os rios, para eu poder responder a essa pergunta. – Está bem, aceito a tua resposta. – disse o rei. – Mas agora se não souberes no que eu estou a pensar, mando-te matar! – Vossa Majestade pensa que está a falar com Frei João e está a falar com o moleiro! Ao dizer isto, o moleiro tira a roupa do Frei João e mostra ao rei que é o moleiro. O rei ficou de boca aberta com a esperteza do homem.

domingo, 26 de fevereiro de 2017

A raposa e o corvo

O Corvo apanhou um queijo, e com ele fugindo, se poisou sobre uma árvore. Viu-o a Raposa, e desejou de lhe comer o seu queijo: e pondo-se ao pé da árvore, começou a dizer ao Corvo: -- Por certo que és formoso, e gentil-homem, e poucos pássaros há que te ganhem. Tu és bem disposto e mui galante; se acertaras de saber cantar, nenhuma ave se comparará contigo. Soberbo o Corvo destes gabos e desejando de lhe parecer bem, levanta o pescoço para cantar; porém abrindo a boca, caiu-lhe o queijo. A Raposa o tomou e foi-se, ficando o Corvo faminto.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Conto irlandês

Há muitos, muitos anos, havia imensos gigantes na Irlanda. Os gigantes eram grandes rivais uns dos outros e sempre que se encontravam, andavam aos socos e pontapés até que um desistisse ou fugisse. Mas todos concordavam que o maior gigante de todos era Cuchulainn. Ele nunca tinha apanhado uma tareia e tinha conseguido derrotar praticamente todos os gigantes do país. Só havia um gigante contra o qual ele não se tinha batido: Fionn mac Cool. É que Fionn conseguia saber o que se passava em todo o lado. Tudo o que tinha de fazer era pôr o polegar esquerdo na boca e chuchar para imediatamente saber o que tinha acontecido, o que estava a acontecer e o que iria acontecer. Assim, conseguia evitar encontrar-se com Cuchulainn, porque sempre que sabia que o gigante vinha lá, fugia e escondia-se até que Cuchulainn se fosse novamente embora. Isto deixava Cuchulainn zangado. Queria ser conhecido como o maior, o mais feroz e o gigante mais feio de toda a Irlanda, mas enquanto não tivesse lutado contra Fionn havia sempre a hipótese, uma pequena hipótese, de ser derrotado. Assim, um dia Cuchulainn resolveu ir à montanha onde Fionn vivia. Fionn tinha construído uma casa no alto da montanha; algumas pessoas diziam que era para poder ver a chegada de outros gigantes e esconder-se deles. Quando Cuchulainn começou a subir a íngreme encosta, Fionn espreitou pela janela e viu-o. “Oh meu Deus!” – gritou ele. “O terrível Cuchulainn vem aí! Desta vez apanha-me de certeza”. Acontece que Fionn era casado com Oona, que era tão inteligente como amável e tão bonita como esperta. Ela perguntou: “Quanto tempo falta para ele chegar?” Fionn pôs o polegar na boca. “Por volta das três horas. E ele quer esborrachar-me como um monte de bosta. O que hei-de fazer?” “Shhhh, fica sossegado” – disse Oona. “Faz o que eu disser e tudo correrá bem”. Logo de seguida, Oona começou a fazer uma fornada de enormes bolos. Três deles como era habitual, mas nos outros três colocou pedras grandes. Quando ficaram prontos, Oona colocou-os em duas prateleiras – os três bolos normais na prateleira de cima e os três bolos com pedras na prateleira de baixo. Depois, disse a Fionn para se enfiar no grande berço de verga, onde ela o embrulhou num cobertor grande e lhe pôs uma touca na enorme cabeça. “Fica aí e finge seres um bebé” – disse ela. “Podes chuchar no dedo para saberes exactamente o que estou a pensar e o que quero que faças. Diz-me só uma coisa: de onde é que vem a força deste gigante?” “Ah, do dedo do meio da mão direita” – disse Fionn. Oona acenou com a cabeça, sentou-se na cadeira de baloiço e ficou à espera que Cuchulainn chegasse. Exactamente às três da tarde, Cuchulainn bateu pesadamente à porta. Fionn puxou o cobertor para cima da cabeça e começou a tremer de medo, mas Oona escancarou a porta. “É aqui que mora Fionn mac Cool?” – trovejou Cuchulainn. “É, sim” – respondeu Oona. “Faça o favor de entrar e de se sentar”. Então Cuchulainn entrou, sentou-se na cadeira de Fionn e olhou em volta. “Que rico bebé tem aqui” – disse ele. “Por acaso o pai não está em casa?” “Lamento, mas não” – disse Oona. “Ele falou em qualquer coisa como ir apanhar um tipo pequenino chamado Cuchulainn. Tenho a certeza que já não se demora”. “Eu sou Cuchulainn” – rosnou o gigante. “Há séculos que tento apanhar o seu marido, mas ele consegue sempre escapar”. “Ah, então o senhor é Cuchulainn” – disse Oona. “Bom, ainda vai a tempo de fugir antes que Fionn chegue a casa”. “Eu fugir dele!” – gritou Cuchulainn. “É sempre ele que foge de mim!” “Creio que está enganado” – disse Oona. “Já viu o meu marido? É tão forte como uma rocha e tão rápido como o vento”. Ela sorriu. “Ah, e já agora, pode, por favor, dar uma volta à casa? O vento está a mudar”. “Dar uma volta à casa!” – exclamou Cuchulainn. “É o que Fionn faz quando o vento sopra de leste” – disse Oona. Cuchulainn foi lá para fora e abanou a cabeça várias vezes; depois estalou o dedo do meio da mão direita três vezes. Em seguida, pegou na casa pelo meio e deu-lhe uma volta. Lá dentro, os dentes de Fionn bateram com o medo, mas Oona mandou-o calar e quando Cuchulainn voltou para dentro agradeceu-lhe como se ele tivesse feito a coisa mais natural do mundo. Depois ela disse: “O tempo está tão seco e eu estou sempre a precisar de água. Pode ir encher esta vasilha por mim? Depois podemos tomar chá enquanto espera a chegada de Fionn”. “Onde posso ir buscar água por aqui?” – perguntou Cuchulainn. Oona apontou para um monte vizinho. “Está a ver aquela pedra no topo daquela colina? Sempre que precisamos de água Fionn vai lá, tira aquela pequena pedra do chão e enche a vasilha no rio que corre por baixo. Obedientemente, Cuchulainn saiu e subiu ao monte. Quando chegou ao topo viu que a pedra era três vezes mais alta do que ele e que devia pesar várias toneladas. Fazendo estalar o dedo do meio da mão direita nove vezes, pôs os braços em torno da pedra e levantou-a de uma só vez do chão. Um rio jorrou do buraco e correu montanha abaixo. Em pouco tempo Cuchulainn tinha a vasilha cheia de água. Oona fez um grande bule de chá e ofereceu a Cuchulainn um dos bolos especiais onde tinha escondido uma pedra. O gigante deu uma dentada e berrou. Cuspiu um enorme dente. “Que tipo de bolo é este?” – gritou. “É duro como uma pedra”. “É o bolo preferido de Fionn” – disse Oona. “Até o bebé adora. Mas talvez seja demais para si. Tome, experimente este, é um pouco mais macio”. E deu-lhe outro dos bolos com pedra. Cuchulainn deu uma enorme dentada e no meio de um uivo de dor cuspiu dois dentes. “Shhhh, não faça barulho” – disse Oona. “Vai acordar o bebé”. Naquele momento Fionn chuchou no polegar e imediatamente soube o que Oona queria que ele fizesse. Deu o berro mais alto que alguma vez se tinha ouvido por aquelas bandas da Irlanda. Cuchulainn deu um pulo e tapou os ouvidos com as mãos. “Meu Deus, esse bebé tem uns grandes pulmões” – disse ele. “Oh, devia ouvir o pai dele” – disse Oona. “Quando grita, ouve-se em África”. Cuchulainn começou a sentir-se desconfortável. Quando mais ouvia falar de Fionn mac Cool, menos gostava do que ouvia. Naquele momento, Fionn, que voltara a chuchar no dedo, abriu a boca toda e gritou com toda a força: “BOLO!” “Pronto, pronto” – disse Oona, e deu-lhe um bolo da prateleira de cima. “Come isto”. Cuchulainn olhava horrorizado enquanto o bebé comia o bolo todo até à última migalha. “Acho que está na altura de me ir embora” – disse ele. “Diga ao seu marido que tenho pena não o ter visto e parabéns aos dois pelo lindo bebé”. “Oh, é uma criança maravilhosa” – disse Oona. “Venha ver”. Oona puxou o cobertor para trás e Fionn gritou e deu pontapés no ar com toda a força. “Que ricas pernas tem” – disse Cuchulainn. “Sim, e os dentes estão a romper como deve ser” – disse Oona. “Ponha o dedo para os sentir”. Achando que lhe ia agradar e que depois se punha a andar dali para fora antes que o terrível marido chegasse, Cuchulainn pôs a mão na boca do bebé. Rápido como um relâmpago, Fionn mordeu o dedo do meio. Cuchulainn gritou tão alto que se ouviu em Timbuktu. Depois, à medida que a sua força se começou a esvair, ele foi ficando cada vez mais pequeno. Encolheu até ficar mais pequeno que os bolos feitos por Oona. Fionn e a mulher olharam para o pequeno gigante e sorriram. Cuchulainn deitou-lhes uma olhadela e saiu da casa a correr, fugindo montanha abaixo. O que lhe aconteceu a seguir não sei, porque nunca mais ninguém o viu nem ouviu falar dele na Irlanda. Quanto a Fionn mac Cool, ele agradeceu à sua esperta mulher e comeu outro dos seus óptimos bolos.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

as 3 velhas

Era uma vez três irmãs, jovens todas elas: uma tinha sessenta e sete anos, a outra setenta e cinco anos e a terceira noventa e quatro. Estas raparigas tinham uma casa com um belo terraço, e este terraço no meio tinha um buraco, para se ver quem passava na rua. A de noventa e quatro ano viu passar um belo jovem. Imediatamente, pegou no seu lencinho mais fino e perfumado e quando o jovem passava por baixo do terraço deixou-o cair. O jovem apanhou o lencinho, sentiu aquele odor suave e pensou: «Deve ser uma belíssima donzela.» Deu uns passos, depois tornou atrás, e tocou à campainha daquela casa. Veio abrir uma das três irmãs, e o jovem perguntou-lhe: -Por favor, há uma rapariga neste palácio? -Sim, senhor, e não uma só. -Faça-me um favor: eu gostava de ver a que perdeu este lencinho. -Não, sabe, não é permitido – respondeu aquela. – Neste palácio é costume que enquanto uma rapariga não se casa, não se pode ver. O jovem já estava de cabeça tão perdida imaginando a beleza desta rapariga, que disse: -Sendo assim, basta. Desposá-la-ei mesmo sem a ver. Agora vou dizer à minha mãe que encontrei uma belíssima jovem e que quero casar-me com ela. Foi a casa, e contou tudo à mãe, que lhe disse: -Querido filho, tem cuidado com o que fazes, que não estejam a enganar-te. Antes de fazeres uma coisa dessas tens de pensar muito bem. E ele: -Sendo assim, basta. Palavra de rei não volta atrás. – Porque aquele jovem era um rei. Volta a casa da noiva, toca à campainha e entra. Vem a velha do costume e pergunta-lhe: -Diga-me, por favor, é avó dela? -Eh, sim, eh, sim, avó dela. -Então se é a sua avó, faça-me este favor: mostre-me ao menos um dedo dessa rapariga. -Po agora não. Tem de vir amanhã. O jovem despediu-se e foi-se embora. Mas ele saiu, as velhas fabricaram um dedo falso, com um dedo de luva e uma unha postiça. Entretanto ele com o desejo de ver este dedo, não conseguiu dormir toda a noite. Veio o dia, vestiu-se, e correu à casa. -Senhora – disse à velha -, aqui estou; vim ver o dedo da minha noiva. -Sim, sim – disse ela - é para já, é para já. Vê-lo-á pelo buraco da fechadura desta porta. E a noiva pôs o falso dedo pelo buraco da fechadura. O jovem viu que era um belíssimo dedo; deu-lhe um beijo e pôs-lhe um anel de diamantes. Depois, apaixonado furioso, disse à velha: -Saiba, avozinha, que eu quero casar-me quanto antes, não posso esperar mais. E ela: -Já amanhã, se quiser. -Muito bem. Caso-me amanhã, palavra de rei. – Ricos como eram, podiam mandar preparar a boda de um dia para o outro, porque não lhes faltava nada; e no dia seguinte a noiva estava a arranjar-se ajudada pelas suas irmãzinhas. Chegou o rei e disse: -Avozinha, cá estou. -Espere aqui um momento, que já lha levamos. – E as duas velhas vieram segurando pelos braço a terceira, coberta de sete véus. -Recorde-se bem – disseram ao noivo – que enquanto não estiverem no quarto nupcial, não é permitido vê-la. – Foram à Igreja e casaram-se. Depois o rei quis que fossem almoçar, mas as velhas não permitiram. -Sabe, a noiva não está habituada a estas coisas. – E o rei teve de se calar. Estava ansioso por que chegasse a noite, para ficar sozinho com a noiva. Mas as velhas acompanharam a noiva ao quarto e não o deixaram entrar porque tinham de despi-la e metê-la na cama. Por fim ele entrou, sempre com as duas velhas atrás, e a noiva estava debaixo dos cobertores. Ele despiu-se e as velhas foram-se embora levando-lhe a luz. Mas ele trouxera consigo uma vela, acendeu-a e quem se deparou à sua frente? Uma velha decrépita e toda encarquilhada. Primeiro ficou imóvel e sem palavras com o susto, depois deu-lhe uma raiva, uma raiva tão grande que pegou na noiva com violência, levantando-a nos ares, e fazendo-a voar pela janela. Por baixo da janela havia uma latada de vidreira. A velha furou a latada e ficou pendurada num pau por uma ponta da camisa de noite. Nessa noite três fadas andavam a passear pelos jardins: passando por baixo da latada viram a velha a baloiçar. Àquele espectáculo inesperado, as três fadas desataram a rir, a rir, a rir, que no fim até lhes doíam os flancos. Mas depois de se fartarem de rir a bom rir, uma delas disse: -Agora que nos rimos tanto à custa dela, temos de lhe dar uma recompensa. E uma das fadas disse: -Claro que damos. Ordeno que a te tornes a mais bela jovem que se possa ver com os dois olhos. -Ordeno, ordeno – disse outra fada – que tenhas um belíssimo marido que te ame e adore. -Ordeno, ordeno – disse a terceira – que sejas grande dama durante toda a vida. E as três fadas foram-se embora. Assim que nasceu o dia, o rei acordou e lembrou-se de tudo. Para se certificar de que não tinha sido tudo um mau sonho, abriu as janelas para ver aquele monstro que tinha atirado lá para baixo na véspera. E eis que vê, pousada na latada, uma belíssima jovem. Levou as mãos aos cabelos. -Pobre de mim, o que fiz eu! – Não sabia como podia puxá-la para cima; por fim tirou um lençol da cama, lançou-lhe uma ponta para ela se agarrar, e puxou-a para o quarto. Quando ela chegou ao pé dele. Feliz e ao mesmo tempo cheio de remorsos, começou a pedir-lhe perdão. A noiva perdoou-lhe e assim ficaram bem um com outro. Passado um pouco ouviu-se bater à porta. É a avó – disse o rei. – Entre, entre! A velha entrou e viu na cama, em vez da irmã de noventa e quatro anos, aquela belíssima jovem. E esta belíssima jovem, como se nada tivesse acontecido, disse-lhe: -Clementina, traz-me café. A velha pôs uma mão na boca para sufocar o grito de espanto; fingiu que não era nada e levou-lhe o café. Mas assim que o rei saiu para os seus afazeres, correu para a noiva e perguntou-lhe: - Mas como, como é que te tornaste assim tão jovem? E a noiva: -Cala-te, cala-te, por favor! Se soubesses o que eu fiz! Mandei aplainar-me. -Foi o carpinteiro. A velha correu ao carpinteiro. -Carpinteiro, dais- me uma aplainadela? E o carpinteiro: -Oh, raios, é verdade que você está seca como uma tábua, mas se a aplaino vai logo para o outro mundo. -Não vos raleis com isso, já disse. Dou-vos um talher de ouro. Quando ouviu dizer «talher de ouro» o carpinteiro mudou de ideias. Guardou o talher e disse: -Deite-se aqui na bancada que lhe dou as aplainadelas que quiser. -E começou a aplainar-lhe uma maxila. A velha lançou um grito Então como é, se grita não se faz nada. Ela virou-se para o outro lado, e o carpinteiro aplainou-lhe a outra maxila. Da velha já não se faz nada. Da outra não se sabe onde foi parar. Se morreu afogada, esganada, morta na sua cama ou sabe-se lá onde: não se conseguiu saber. E a noiva ficou sozinha em casa com o jovem rei e foram sempre felizes.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

As 3 laranjas mágicas

Era uma vez um velho rei que, decidiu que era a hora do seu filho casar. Para escolher a felizarda, convidou várias princesas, muitas delas vindas de muito longe, para participarem na festa. Mas, mesmo com várias pretendentes, o príncipe não gostou de nenhuma. Para resolver a situação, decidiu que seria melhor ele próprio procurar uma esposa, mas sózinho. Assim, o príncipe montou o seu cavalo e partiu, rumo ao desconhecido. Um certo dia, chegou a uma floresta e, na entrada da mesma havia uma laranjeira: • Ah!!! Esta laranjeira tem três magníficas laranjas de ouro! Vou colhê-las. – declarou o príncipe, seguindo o seu caminho. Mais tarde, com o grande calor que fazia, o príncipe teve sede: - Vou abrir uma das laranjas, para ver se fico melhor. - E assim fez - Que maravilha, é uma delícia! Entretanto, da laranja saiu uma bela donzela, com os olhos da cor do céu, e cabelos da cor do sol. - Dá-me um golo de água, por favor! - rogou a rapariga ao príncipe. - Infelizmente, não tenho água para te dar! - respondeu ele, encantado com a visão dela. Com esta resposta, ela desapareceu tal como tinha vindo. O príncipe continuou a sua jornada mas, o calor aumentava à medida que caminhava. - Estou de novo cheio de sede, por isso vou abrir a segunda laranja! Ao abrir a segunda laranja, sai outra donzela, esta com os olhos da cor dum lago, e o cabelo vermelho, como uma cereja: - Peço-te por tudo, dá-me água! - implorou a rapariga. - Desculpa, mas não tenho! Afinal, quem és tu? - perguntou o príncipe, mas ela já tinha desaparecido. Por fim, ele chegou a uma fonte onde conseguiu saciar, toda a sua sede. Agora, estava era com fome: - Vou abrir a última laranja, e vamos lá a ver o que acontece! Tal como das outras vezes, também desta laranja saiu uma donzela, com os olhos e cabelos negros como as asas dum corvo, e a pele branca como a neve: - Dá-me água! - suplicou a rapariga. - Agora, já posso satisfazer o teu pedido! - respondeu o príncipe, enquanto mergulhava as mãos, em forma de concha, na água da fonte. Aproximou-se da donzela e deu-lhe a água, para beber. E, assim se quebrou o feitiço de uma bruxa que, tinha encarcerado a rapariga, nas laranjas mágicas. O príncipe, encantado com ela, levou-a para o seu castelo, onde os dois se casaram, e viviam muito felizes. Algum tempo depois, a bruxa descobriu que a menina tinha sido libertada e, ficou furiosa. Decidiu então disfarçar-se de vendedora, e foi até ao castelo: - Ganchos para o cabelo! Quem quer comprar estes belos ganchos? A menina, já rainha, pediu à velhota para entrar: - Faça favor! Que ganchos tão bonitos…Quero este que, tem uma pérola na ponta. - Deixe-me ser eu a pô-lo no seu cabelo! - pediu a bruxa manhosa. A rainha inclinou-se e ela espetou-lhe o gancho na cabeça, transformando-a numa pomba branca. A rainha voou, voou, até chegar à floresta onde, o seu marido estava a caçar. - Que bela pomba! Vou apanhá-la para a dar à minha esposa de presente. - disse ele, sem saber que a pomba era a sua própria rainha. Quando chegou a casa, o príncipe teve um enorme desgosto ao ver que, a sua mulher não estava em casa. E os meses passaram e, ela não regressava. O único consolo dele, era a pequena pomba branca que, nunca o abandonava. Um dia, ao acariciar a cabeça da pomba, ele sentiu a pérola que enfeitava o gancho: - Quem seria capaz desta crueldade? Vou tirar isto, para ela não se magoar. Ao puxar o gancho… Aconteceu um milagre!!! A pomba transformou-se, na sua bela esposa. - Meu amor, estava com tantas saudades tuas! O que foi que aconteceu? - perguntou o príncipe, muito emocionado com a volta da sua amada. Depois de todas as explicações, ficou furioso e, mandou os seus soldados irem buscar a maldita bruxa, à sua presença. No entanto, isso não foi preciso, pois a velha já tinha morrido, atraiçoada pelos seus próprios feitiços. E assim, o rei e a bela rainha viveram felizes para sempre...

sábado, 18 de fevereiro de 2017

Lenda do negrinho do pastoreio

É uma lenda popular principalmente no sul do Brasil. Nos tempos da escravidão no Brasil, havia um fazendeiro malvado que tinha em sua fazenda escravos negros de várias idades, inclusive crianças. Num dia de inverno rigoroso o fazendeiro mandou que um menino escravo fosse pastorear seus cavalos e potros novos. Ao entardecer quando o menino voltou com os cavalos o fazendeiro reclamou que faltava um, um cavalo baio. Como castigo chicoteou o menino até sangrar e mandou o menino procurar o cavalo. Apavorado o menino foi a procura do cavalo baio. Quando finalmente o encontrou não conseguiu prendê-lo. Ao retornar à fazenda, o menino encontrou o fazendeiro ainda mais irritado. Este resolveu castigá-lo novamente, chicoteou o garoto e o amarou em cima de um formigueiro. No dia seguinte o fazendeiro retornou ao local e se assustou com o que viu: o menino estava lá, de pé, sem nenhuma marca de chicotada, nem mordida de formigas. Ao lado dele a Virgem Maria e próximo a eles o cavalo baio. O fazendeiro se ajoelhou pedindo perdão. O Menino nada respondeu, beijou as mãos da Nossa Senhora, montou no cavalo baio e partiu a galope.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

A Lenda da princesa Europa

Europa era uma linda princesa fenícia. Como ainda não chegara à idade de casar, vivia com os pais num magnífico palácio e tinha por hábito dar longos passeios com as amigas nos prados e nos bosques. Certo dia quando apanhava flores junto da foz de um rio foi avistada por Zeus (o deus supremo) que se debruçava lá do Olimpo observando os mortais. Fascinado com tanta formosura, decidiu raptá-la. Para evitar a fúria da sua ciumentíssima mulher, quis disfarçar-se. Nada mais fácil para quem tem poderes sobre naturais! Tomou a forma de um touro. Um belo touro castanho com um círculo prateado a enfeitar a testa. Desceu então ao prado e deitou-se aos pés da Europa. Ela ficou encantada por ver ali um animal tão manso, de pelo sedoso e olhar meigo. Primeiro afagou-o, depois sentou-se-lhe no dorso e... o touro disparou de imediato a voar por cima do oceano. A pobre princesa ficou assustadíssima. Mas não tardou a perceber que o raptor só podia ser um deus disfarçado, pois entre as ondas emergiam peixes, tritões e sereias a acenar-lhes. Até Posídon apareceu agitando o seu tridente. Muito chorosa, Europa implorou que não a abandonasse num lugar ermo. Zeus consolou-a, mostrou-se carinhoso, prometeu levá-la para um sítio lindo que ele conhecia fora da Ásia. Prometeu e cumpriu. Instalaram-se na ilha de Creta e tiveram três filhos que vieram a ser famosos. Agora o nome da princesa é que ficou famosíssimo! Agradou a poetas da Grécia Antiga que passaram a chamar Europa aos territórios para lá da Grécia. E agradou ao historiador Hérodoto, que no séc. V a.C foi o primeiro a chamar Europa a todo o continente. Autor: in A Europa dá as Mãos, Ana Maria Magalhães/Isabel Alçada Fonte: Edição: Centro de Informação Europeia Jacques Delors, 1995.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

comunicação

“Havia um cego que pedia esmola à entrada do Viaduto do Chá, em São Paulo. Todos os dias passava por ele, de manhã e à noite, um publicitário que deixava sempre alguns centavos no chapéu do pedinte. O cego trazia pendurado no pescoço um cartaz com a frase: ”Cego de nascimento. Uma esmola, por favor”. Certa manhã, o publicitário teve uma idéia: virou o letreiro do cego ao contrário e escreveu outra frase. À noite, depois de um dia de trabalho, perguntou ao cego como é que tinha sido seu dia. O cego respondeu, muito contente: – Até parece mentira, mas hoje foi um dia extraordinário! Todos que passavam por mim, deixavam alguma coisa. Afinal, o que é que o senhor escreveu no letreiro? O publicitário havia escrito uma frase breve, mas com sentido e carga emotiva suficientes para convencer os que passavam a deixarem algo para o cego. A frase era: “Em breve chegará a primavera e eu não poderei vê-la”. Na maioria das vezes não importa O QUE você diz, mas COMO você diz

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Oásis

Conta uma popular lenda do Oriente que um jovem chegou à beira de um oásis junto a um povoado e, aproximando-se de um velho, perguntou-lhe: – Que tipo de pessoa vive neste lugar ? – Que tipo de pessoa vivia no lugar de onde você vem ? – perguntou por sua vez o ancião. – Oh, um grupo de egoístas e malvados – replicou o rapaz – estou satisfeito de haver saído de lá. – A mesma coisa você haverá de encontrar por aqui –replicou o velho. No mesmo dia, um outro jovem se acercou do oásis para beber água e vendo o ancião perguntou-lhe: – Que tipo de pessoa vive por aqui? O velho respondeu com a mesma pergunta: – Que tipo de pessoa vive no lugar de onde você vem? O rapaz respondeu: – Um magnífico grupo de pessoas, amigas, honestas, hospitaleiras. Fiquei muito triste por ter de deixá-las. – O mesmo encontrará por aqui – respondeu o ancião. Um homem que havia escutado as duas conversas perguntou ao velho: – Como é possível dar respostas tão diferente à mesma pergunta? Ao que o velho respondeu : – Cada um carrega no seu coração o ambiente em que vive. Aquele que nada encontrou de bom nos lugares por onde passou, não poderá encontrar outra coisa por aqui. Aquele que encontrou amigos ali, também os encontrará aqui, porque, na verdade, a nossa atitude mental é a única coisa na nossa vida sobre a qual podemos manter controle absoluto.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

BARATA

     Era uma vez uma barata que estava sempre a falar, a falar. Falava por tudo e por nada: era uma fala-barata. Um dia estava à conversa com uma aranha e disse: "Hoje está um dia esplêndido!". Uma formiga que ia a passar, comentou: "Ó barata, hoje estás a falar caro!".
     Ela não ligou nenhuma. E continuou. A falar barato.

Álvaro Magalhães, "Histórias pequenas de bichos pequenos"

domingo, 12 de fevereiro de 2017

TRAÇA

     Era uma vez uma traça. E ainda é, por acaso. Mas isso é porque eu tenho muita paciência. Conheci-a num lenço branco que eu tinha: andava ela a traçá-lo. Ia assoar-me e vi-a. Antes que eu pudesse falar, pediu-me com aquela vozita doce das traças: "Mostra-me um traço". Fui buscar um lápis e fiz os traços todos que sabia: largos, estreitos, curtos, compridos, tracinhos, travessões, tracejado, tudo. "Ai os traços são isso?"- disse a traça com ar de troça. E acrescentou, com desdém: "Não gosto!".
     Doutra vez apareceu-me com uma folha de papel e um ar de bicho muito importante. "O que é isso?"- perguntei desconfiado. "Versos, meu caro, versos. Dediquei-me à poesia. Queres ouvir uma quadra?" Eu disse que sim e ela disse. Era assim:

     NUM Á COISA CUM MAIS GRAÇA
     CUMA TRAÇA PEQUENINA
     CANDO ELA PAÇA INTÉ TREMEM
     AS BOLAS DE NAFETALINA

     Depois mostrou-me o papel com a quadra escrita à mão. "É bonita", disse eu, "mas olha que tem alguns erros. Por exemplo, paça é com dois esses: passa" "Qual quê!", disse ela muito ofendida, "isso é se for uma Prassa, assim como Prassa da Liberdade ou Prassa da República". Eu nem tive coragem de continuar. Ela é que teve: "Vinhas agora tu ensinar-me a gramática... fica sabendo que antes de andar a traçar a tua roupa já tracei muitos dicionários".
     Ao tempo que tudo isto se passou e não voltou a falar-me. E ainda ontem encontrei a minha camisa preferida com um buraco enorme. Cá para mim foi ela, só para me arreliar. é preciso ter uma paciência...
Álvaro Magalhães, "Histórias pequenas de bichos pequenos"

sábado, 11 de fevereiro de 2017

Lenda dos Corredores de Fado Antigamente, diz a lenda, que os pais que tivessem sete rapazes ou sete raparigas todos seguidos, o mais velho tinha de ser padrinho do mais novo, se não o mais novo ia "correr o fado", ou seja, à meia-noite ele ou ela transformava-se num animal. Depois, quando chegava à porta de uma pessoa que sabia que ia aparecer o "corredor", ele ou ela (corredor) ia espreitar pela fechadura da porta. O dono da casa já tinha em seu poder um objecto para o picar. Consta que uma vez, um "corredor" foi picado na vista, depois, quando acabou o "fado" e se transformou novamente na pessoa que era, verificou que estava cego dessa vista e foi agradecer à pessoa que lhe quebrou o "fado". Escola de Caxinas - Vila do Conde A recolha desta lenda da tradição oral da nossa localidade foi feita por Miguel da Cruz Dourado e Daniel Filipe Passos Dourado Alunos da Professora Conceição Ferreira

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

PULGA

     Era uma vez uma pulga que eu tinha, a qual, por acaso, também tinha uma pulga que, por sua vez, tinha outra pulga. Parece que esta última ao princípio não tinha, mas depois também apanhou uma pulga.
     A verdade é que quando eu coçava a minha pulga, a pulga coçava também a pulga dela. E a pulga da pulga também. E a pulga da pulga da pulga também. E a pulga da pulga da pulga da pulga também. E...

Álvaro Magalhães, "Histórias pequenas de bichos pequenos"
   

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

BICHO-CARPINTEIRO

     Era uma vez um bicho-carpinteiro, ou antes, dois bichos-carpinteiros (um bicho e uma bicha, ambos carpinteiros) que se conheceram e passaram a viver juntos.  Algum tempo depois, havia bichinhos-carpinteiros por toda a casa. Para conseguirem tratar deles, andavam sempre muito atarefados, a correrem de um lado para o outro. As pessoas diziam: "Estes parece que têm bichos-carpinteiros." E tinham!
     Era uma vez outro bicho-carpinteiro que, por acaso, não tinha jeito para ser ele, para ser bicho-carpinteiro. Mal sabia pregar um prego. Uma vez fez uma porta e quando tentou vendê-la a uma pessoa, esta disse: "Desculpe, mas de momento não estou a precisar de uma janela". E outra: "Ora essa! Para que quero eu uma cadeira sem pernas?".
     O bicho-carpinteiro, coitado, já não comia, já não dormia...
     Então o pai dele disse. "O meu filho vai mas é ser outra coisa, o que ele quiser". E ele lá foi. Agora já é. Quando os bichos-carpinteiros adoecem ou se magoam, vão lá a casa e ele dá-lhes sempre o remédio certo, faz uns pensos que só visto. É um bicho-enfermeiro.

Álvaro Magalhães, "Histórias pequenas de bichos pequenos"

domingo, 5 de fevereiro de 2017

CENTOPEIA

     Era uma vez uma centopeia muito simpática que eu conheci nas férias da Páscoa. Convidei-a várias vezes para jantar mas ela nunca aparecia. Quando acabava de apertar os cordões do centésimo sapato do centésimo pé, já eram horas de começar a desapertar os do primeiro para se ir deitar.
     Um problema! Quando calçava só cinquenta sapatos tinha tempo de sair para tomar um café ou um sorvete, mas nesses casos, como ela mesmo dizia, lamentando-se, não passava de uma cinquentopeia.
     Uma vez passei por ele na rua e era uma quarenta-e-setepeia. Ia tão envergonhada que eu fiz de conta que não a vi.

Álvaro Magalhães, "Histórias pequenas de bichos pequenos"

sábado, 4 de fevereiro de 2017

JOANINHA

     Era uma vez uma joana vermelha com pintinhas pretas. Por baixo deste vestido lindo, duas pequenas asas pretas, descansando. Ainda era pequena e, por isso, era uma joana muito joaninha. Também há Joanas que são meninas e enquanto são pequenas também são joaninhas, mas raramente são vermelhas com pintinhas pretas. Quanto às asas já não se pode dizer o mesmo, pois todas as crianças têm asas, embora não se saiba.
     É frequente uma joaninha destas encontrar uma joaninha das outras. Então, baixa-se o mais que pode e diz-lhe: "Joaninha voa, voa, que o teu pai foi para Lisboa!". A joaninha ouve e, às vezes, voa mesmo. Mas nem sempre vai para Lisboa, fica-se mesmo pelo pezinho de erva mais próximo. O mundo é demasiado grande para uma joaninha e Lisboa uma cidade muito suja e muito triste.

Álvaro Magalhães, "Histórias pequenas de bichos pequenos"

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

ESCARAVELHO

     Era uma vez um escaravelho que ficava muito zangado sempre que eu o encontrava e lhe dizia: "Olá, escaravelho!". Eu não sabia porquê e só passado muito tempo é que ele me explicou:
     - Sabes, como sou ainda muito novo (ainda nem fiz um ano), acho um disparate que me chamem escaravelho.
     E eu logo:
     - Até amanhã, escaranovo!

     Era uma vez outro escaravelho que eu encontrei a seguir.
     - Bom dia, escaranovo! - disse eu.
     Ele ficou muito admirado a olhar para mim e eu pensei: "Este deve ser mesmo velho" e emendei com um sorriso:
     - Bom dia, escaravelho!
     Então é que ele ficou arreliado. Olhou-me bem de frente e disse:
     - Fique sabendo, caro senhor, que o meu nome é Alfredo.
     Depois, virou-me as costas com o maior desprezo e foi-se embora.
     Os escaravelhos são assim.

Álvaro Magalhães, "Histórias pequenas de bichos pequenos"

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Lenda da moira Zaida

Na serra de Sintra, perto do Castelo dos Mouros, existe uma rocha com um corte que a tradição diz marcar a entrada para uma cova que tem comunicação com o castelo. É conhecida pela Cova da Moura ou a Cova Encantada e está ligada a uma lenda do tempo em que os Mouros dominavam Sintra e os cristãos nela faziam frequentes incursões. Num dos combates, foi feito prisioneiro um cavaleiro nobre por quem Zaida, a filha do alcaide, se apaixonou. Dia após dia, Zaida visitava o nobre cavaleiro até que chegou a hora da sua libertação, através do pagamento de um resgate. O cavaleiro apaixonado pediu a Zaida para fugir com ele mas Zaida recusou, pedindo-lhe para nunca mais a esquecer. O nobre cavaleiro voltou para a sua família mas uma grande tristeza ensombrava os seus dias. Tentou esquecer Zaida nos campos de batalha, mas após muitas noites de insónia decidiu atacar de novo o castelo de Sintra. Foi durante esse combate que os dois enamorados se abraçaram, mas a sorte ou o azar quis que o nobre cavaleiro tombasse ferido. Zaida arrastou o seu amado, através de uma passagem secreta, até uma sala escondida nas grutas e, enquanto enchia uma bilha de água numa nascente próxima para levar ao seu amado, foi atingida por uma seta e caiu ferida. O cavaleiro cristão juntou-se ao corpo da sua amada e os dois sangues misturaram-se, sendo ambos encontrados mais tarde já sem vida. Desde então, em certas noites de luar, aparece junto à cova uma formosa donzela vestida de branco com uma bilha que enche de água para depois desaparecer na noite após um doloroso gemido…

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Revolução

Manhãzinha cedo, senti acordar-me o sopro da voz ciciada de minha mulher: - 0 Fafe telefonou de Cascais, ... Lisboa está cercada por tropas… Refilo, rabugento: - Hã? (...) Levanto-me preparado para o pesadelo de ouvir tombar pedras sobre cadáveres. Espreito através da janela. Pouca gente na rua. Apressada. Tento sintonizar a estação da Emissora Nacional. Nem um som. Em compensação o telefone vinga-se desesperadamente. Um polvo de pânico desdobra-se pelos fios. A campainha toca cada vez mais forte. Agora é o Carlos de Oliveira. - Está lá? Está lá? É você, Carlos? Que se passa? Responde-me com uma pergunta qualquer do avesso. Às oito da manhã o Rádio Clube emite um comunicado ainda pouco claro: - Aqui, Posto de Comando das Forças Armadas. Não queremos derramar a mínima gota de sangue. De novo o silêncio. Opressivo. De bocejo. Inútil. A olhar para o aparelho. Custa-me a compreender que se trate de revolução. Falta-lhe o ruído, (onde acontecerá o espectáculo?), o drama, o grito. Que chatice! A Rosália chama-me, nervosa: - Outro comunicado na Rádio. Vem, depressa. Corro e ouço: - Aqui o Movimento das Forças Armadas que resolveu libertar a Nação das forças que há muito a dominavam. Viva Portugal! Também pede à policia que não resista. Mas Senhor dos Abismos!, trata-se de um golpe contra o fascismo (isto é: salazismo-caetanismo). São dez e meia e não acredito que os «ultras» não se mexam, não contra-ataquem! (...) A poetisa Maria Amélia Neto telefona-me: «Não resisti e vim para o escritório». Os revoltosos estão a conferenciar com o ministro do Exército. Na Rádio a canção do Zeca Afonso: Grândola, vila morena ... Terra da fraternidade... 0 povo é quem mais ordena... Sinto os olhos a desfazerem-se em lágrimas. De súbito, aliás, a Rádio abre-se em notícias. 0 Marcelo está preso no Quartel do Carmo. A polícia e a Guarda Republicana renderam-se. 0 Tomás está cercado noutro quartel qualquer. E, pela primeira vez, aparece o nome do General Spínola. Novo comunicado das Forças Armadas. 0 Marcelo ter-se-á rendido ao ex-governador da Guiné. (Lembro-me do Salazar: «o poder não pode cair na rua»). Abro a janela e apetece-me berrar: acabou-se! acabou-se finalmente este tenebroso e ridículo regime de sinistros Conselheiros Acácios de fumo que nos sufocou durante anos e anos de mordaças. Acabou-se. Vai recomeçar tudo. A Maria Keil telefonou. 0 Chico está doente e sozinho em casa. Chora. (Nesta revolução as lágrimas são as nossas balas. Mas eu vi, eu vi, eu vi! (...) Antes de morrer, a televisão mostrou-me um dos mais belos momentos humanos da História deste povo, onde os militares fazem revoluções para lhes restituir a liberdade: a saída dos prisioneiros políticos de Caxias. Espectáculo de viril doçura cívica em que os presos... alguns torturados durante dias e noites sem fim.... não pronunciaram uma palavra de ódio ou de paixões de vingança. E o telefone toca, toca, toca... Juntámos as vozes na mesma alegria. (...) Saio de casa. E uma rapariga que não conheço, que nunca vi na vida, agarra-se a mim aos beijos. Revolução. José Gomes Ferreira Poeta Militante III - Viagem do Século Vinte em mim, Lisboa, Moraes Editores, 1983