terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Era uma vez... uma princesa

Era uma vez, há muito tempo atrás, um lugar muito especial onde uma menina muito especial morava. A menina era uma princesa que vivia sozinha no seu doirado palácio. Ela tinha um reino muito bonito com muitas flores, frutas doces, árvores que mudavam de cor a cada estação, campos ricos e férteis e animais diferentes e interessantes. As pessoas nesse lugar eram felizes e amavam a sua princesa. Mas a princesa não estava feliz ... ela queria ver o mundo, sonhava com lugares distantes do seu reino tão quente e seguro. Então, um dia, resolvei viajar. A princesa caminhou, caminhou.... O tempo passava lentamente. Ao final do dia, parou para comer. Ela era uma linda princesa, amada e cuidada por todos em seu reino, mas sabia ser cautelosa e sabia coisas sobre a vida. Assim tinha-se preparado para a viagem com água, pão e queijo. Enquanto comia lentamente percebeu que se sentia triste e fria. Sinto solidão! Era a primeira vez que tinha esse sentimento. Como podia ser? -Sou uma princesa amada e todo mundo gosta de mim. Como posso sentir que estou sozinha? Finalmente estava fazendo o que tinha sonhado por muito tempo: ter a oportunidade de conhecer e experimentar o mundo. Esperava que tal lhe trouxesse muita felicidade, mas encontrou um doce sentimento de saudade (é uma palavra portuguesa para o sentimento de esperança à mistura com memórias). Na verdade, ela gostou da sensação, doeu um pouco, mas era tão doce e quente! Então guardou este sentimento dentro do seu coração e deitou-se para dormir. Quando acordou estava uma bela manhã de sol brilhante e voltou ao seu caminho. Caminhando chegou a uma cidade. As pessoas passavam apressadas e trabalhando. Era uma cidade movimentada. Apesar de saber que não deveria falar com estranhos (alguém que a amava a tinha aconselhado), aproximou-se de um homem que estava a construir algum tipo de instrumento útil (ela admirava as pessoas que trabalham duro e com as próprias mãos). O homem não lhe prestou muita atenção o que a feriu um pouco. Estava acostumada a ser o centro de toda a atenção e disse-o ao homem. Ele espantou-se e olhando surpreso perguntou: -Porquê? Você não é especial! -Eu não sou especial!?! Mas ... eu sou uma bela princesa! -Como!!? Você não é bonita aos meus olhos! Você é uma jovem comum, parece-se com a maioria das jovens desta cidade, não é diferente delas! - Mas meu cabelo é amarelo e brilhante como o sol e meus olhos são azuis como o céu e o mar! - Oh, Oh, riu o homem. Parece que você é uma jovem muito inchada e vaidosa e isso não é bom. Se quiser ver a beleza verdadeira vá visitar a nossa princesa amada. Ela é a menina mais maravilhosa do mundo! Os seus olhos são negros e conseguem olhar profundamente dentro de si; o seu cabelo é castanho escuro e brilhante e tem todos os cheiros bons da terra. Suas mãos morenas e dão magia a tudo que faz ... O homem parou de falar, o olhar perdido, pensando talvez. A princesa espantada foi-se embora. Ela tinha aprendido que a beleza não é algo absoluto ou objectivo e sentiu um pouco de pena de si mesma. Caminhou e caminhou... Ás tantas alcançou uma região montanhosa. Do topo de algumas colinas as vistas eram maravilhosas: campos de todas as cores. Adorava especialmente os verdes, a erva ondulando como ondas, suavemente empurradas pelo vento. AO longe avistou um castelo. Era um castelo muito antigo feito de pedra. Era um edifício impressionante e a princesa pensou que gostaria de conhecer os que lá morariam. No caminho para o castelo cruzou-se com um pastor que estava a guardar as suas ovelhas brancas. Gostpou da sua maneira de olhar e se mover, tão calma, tão fácil, tão leve, e resolveu conversar com ele. O pastor disponibilizou-se a ajudá-la a encontrar o dono do velho castelo, mas aconselhou-a a ser submissa na frente do mesmo pois, apesar de ser um bom rei, era muito rígido, gostava de regras e precisava de sentir o seu poder e autoridade. - Mas eu sou uma princesa! Eu tenho o meu próprio reino. Sou igual a ele! - Bem, Vossa Alteza me perdoe - disse o pastor com uma pequena reverência. Eu nunca diria que é uma princesa, não depois de ter visto vossa alteza a olhar para mim. -Porquê? - perguntou a princesa - Meu Senhor nunca olha para os seus súbditos olhos nos olhos! Meu Senhor olha sempre para a frente. Olhar directamente nos olhos é incomum para uma princesa, talvez não deva fazer isso. - E porque não? Perguntou a princesa - Eu realmente não sei dizer, mas fazendo isso você transforma-se numa simples mulher como as outras. - E porque sou uma princesa, não sou mais uma mulher? - Nunca pensei nisso. Meu Senhor e sua família estão muito longe de nós, seu povo, e eu nunca percebi bem se eles são humanos como nós. Falando assim chegaram ao castelo. A princesa entrou e conheceu o rei. O pastor voltou para suas ovelhas brancas. Mas saibam os leitores que , no caminho para o castelo a princesa e o pastor falaram sobre muitas outras coisas importantes na vida, especialmente sobre o céu, os pássaros, as flores, as árvores, o tempo. A princesa aprendeu muito sobre coisas que poderiam ajudar a melhorar a vida no seu reino o que a deixou muito feliz. Com o pastor partilhou momentos quase perfeitos. À noite, depois da reunião com o rei (foi uma reunião terrível pelo que não interessa manter na memória), a princesa voltou para o pastor. Estavam apaixonados.... Casaram-se, tiveram muitos filhos e viveram felizes para sempre? Não, isso não é a vida real. A princesa tinha o seu périplo para continuar... Assim na manhã seguinte, acenaram adeus, nada foi prometido, e cada um seguiu o seu próprio caminho. A princesa andou, andou, cheia de lembranças. No final do dia chegou ao mar. -O mar é o melhor amigo que se pode desejar, pensou a princesa. Com ele pode-se compartilhar tudo que se queira, sentimentos, pensamentos, sonhos. O mar ouve, fala, move-se, pode-se até mesmo deixá-lo beijar-nos e abraçar-nos sempre que se quiser. Podemos deixá-lo trazer-nos uma espuma suave de carinho. Como qualquer pessoa tem seus próprios estados de espírito e às vezes fica irritado, grita e ameaça bater. Outras vezes é como um bebê, alongando-se e movendo-se lentamente pedindo ternura. A princesa tentou adivinhar que países e pessoas viveriam do outro lado do oceano, lá longe. Caminhando viu uma pequena cidade de pescadores. -Ver todos os barcos ao longo do cais faz-me pensar sobre a vastidão do mundo, pensou a princesa. Cada barco carrega uma história pequena e carrega uma promessa de viagem, um sonho de um novo começo, a chegada a em algum lugar que podemos supor maravilhoso! Viu uma peixeira e perguntou-lhe sobre a terra do outro lado do oceano. - Eu realmente não sei, respondeu a mulher. Nunca cruzámos todo o mar. Nós apenas entramos no oceano, às vezes passamos alguns dias para encher nossos barcos, mas depois voltamos para as nossas famílias. É a nossa maneira de viver. - E nunca se perguntou sobre o outro lado? Não tem curiosidade de saber? - Não, de jeito nenhum! - disse a mulher. Estamos satisfeitos com o que temos aqui. Meus filhos estão crescendo bem, não têm fome nem doenças, o meu marido trata-me bem, e não desejo mais nada. A minha vida é abençoada, não acha? - Acho que sim - disse a princesa sorrindo para a mulher, e foi -se embora. A mulher continuou imóvel por um momento observando a princesa a afastar-se lentamente. Depois voltou para o seu trabalho com as redes de pesca pensando. Sobre o quê? Isso não sei dizer ... A princesa estava cansada e pensou que talvez a peixeira estivesse certa, deveríamos ficar felizes com tudo o que temos. E sentiu que era uma pessoa muito cheia de sorte. E assim, decidiu que era hora de voltar para o seu reino. No caminho de volta conheceu um homem que estava também viajando. - Quem é Você? perguntou-lhe - Sou um príncipe de um reino muito distante. - E O que está a fazer? - Estou viajando pelo mundo - Porquê? O príncipe ficou imóvel por um momento olhando para ela. - Eu realmente não sei ao certo, procurando acho eu. - Eu estou a voltar para a minha casa de uma viagem. Se quiser pode vir comigo - convidou a princesa. - Está bem, poque não? E assim viajaram juntos por sete dias e sete noites, sempre falando, compartilhando as suas experiências e sonhos. Quando chegaram ao reino da princesa todos ficaram felizes! A princesa amada e bela tinha voltado! Foi organizada uma festa com muitas flores, música maravilhosa e todos dançaram com alegria. As pessoas vieram de todos os lados em redor para compartilhar esta bonita felicidade! E esta história está quase a terminar. O príncipe e a princesa casaram-se, tiveram muitos filhos e ficaram felizes para sempre? Não, nunca é assim ... Na verdade, o príncipe e a princesa casaram-se sim, tiveram dois filhos, e todos no reino ficaram felizes com isso. Tal trouxe prosperidade a ambos os reinos que se uniram. Mas saibam os leitores que nunca prometeram amor para sempre um ao outro. O príncipe ainda está procurando, ninguém sabe o quê nem mesmo ele, e a princesa vai frequentemente ao topo das montanhas e por lá se senta, assistindo ao pôr do sol, observando os campos e pensando no pastor. E à noite olha o fogo da lareira e fica se perguntando quem viverá no Outro lado do oceano... Paula Almeida

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

A gata e o sábio

O sábio de Bechmezzinn (aldeia situada no norte do Líbano) era muito rico. Dedicava o melhor do seu tempo ao estudo e a tratar os doentes que o procuravam. A sua fortuna permitia-lhe socorrer os infelizes e toda a gente dizia que ele era a dedicação em pessoa. Homem piedoso e recto, a injustiça revoltava-o. Muitas pessoas vinham consultá-lo quando tinham alguma divergência com vizinhos ou parentes. O sábio dava os melhores conselhos e desempenhava frequentemente o papel de mediador. Tinha uma gata a quem se dedicava particularmente. Todos os dias, depois da sesta, ela miava para chamar o dono. O sábio acariciava-a e levava-a para o jardim, onde ambos passeavam até ao pôr-do-sol. Ela era a sua única confidente, diziam os criados. A gata dirigia-se muitas vezes à cozinha, onde era bem recebida. O cozinheiro não escondia nem a carne nem o peixe, porque ela nada roubava, fosse cru ou cozinhado, contentando-se com o que lhe davam. Ora, uma tarde, depois do passeio diário, a gata roubou furtivamente um pedaço de carne de uma panela. Tendo-a surpreendido, o cozinheiro castigou-a puxando-lhe severamente as orelhas. Vexada, a gata fugiu e não apareceu mais durante todo o serão. Intrigado, o sábio perguntou por ela na manhã seguinte. O cozinheiro contou-lhe o que se passara. O sábio saiu para o jardim e durante muito tempo chamou a gata, que acabou por aparecer. — Porque roubaste a carne? — perguntou o sábio. — O cozinheiro não te dá comida que chegue? A gata, que tinha parido sem que ninguém soubesse, afastou-se sem responder e voltou seguida de três lindos gatinhos. Depois, fugiu e trepou à figueira do jardim. O sábio pegou nos três gatinhos e entregou-os ao cozinheiro que, ao vê-los, mostrou uma grande admiração. — A gata não roubou comida a pensar nela — declarou o sábio. — O seu gesto foi ditado pela necessidade. Portanto, não é de condenar. Para alimentar os filhos, qualquer ser, mesmo mais frágil do que um mosquito, roubaria um pedaço de carne nas barbas de um leão. A gata limitou-se a seguir o que lhe ditava o seu amor maternal. A conduta dela nada tem de repreensível. O pobre animal está a sofrer por a teres castigado injustamente. Fugiu para a figueira porque está zangada contigo. Deves ir lá pedir-lhe desculpa, para que se acalme e tudo volte ao normal. O cozinheiro concordou. Tirou o turbante, dirigiu-se à figueira e pediu perdão ao animal. Mas a gata virou a cabeça. O sábio teve de intervir. Conversou longamente com ela e lá conseguiu convencê-la a descer da árvore. A gata desceu lentamente da figueira, veio a miar roçar-se nas pernas do sábio e foi para junto dos seus três filhotes. Tradução e adaptação Jean Muzi 16 Contes du monde arabe Paris, Castor Poche-Flamarion, 1998 adaptado

sábado, 28 de janeiro de 2017

Sempre não

Um cavaleiro, casado com uma dama nobre e formosa, teve de ir fazer uma longa jornada: receando acontecesse algum caso desagradável enquanto estivesse ausente, fez com que a mulher lhe prometesse que enquanto ele estivesse fora de casa diria a tudo: – Não. Assim pensava o cavaleiro que resguardaria o seu castelo do atrevimento dos pajens ou de qualquer aventureiro que por ali passasse. O cavaleiro já havia muito que se demorava na corte, e a mulher aborrecida na solidão do castelo não tinha outra distracção senão passar as tardes a olhar para longe, da torre do miradouro. Um dia passou um cavaleiro, todo galante, e cumprimentou a dama: ela fez-lhe a sua mesura. O cavaleiro viu-a tão formosa, que sentiu logo ali uma grande paixão, e disse: – Senhora de toda a formosura! Consentis que descanse esta noite no vosso solar? Ela respondeu: – Não! O cavaleiro ficou um pouco admirado da secura daquele não, e continuou: – Pois quereis que seja comido dos lobos ao atravessar a serra? Ela respondeu: – Não. Mais pasmado ficou o cavaleiro com aquela mudança, e insistiu: – E quereis que vá cair nas mãos dos salteadores ao passar pela floresta? Ela respondeu: – Não. Começou o cavaleiro a compreender que aquele Não seria talvez sermão encomendado, e virou as suas perguntas: – Então fechais-me o vosso castelo? Ela respondeu: – Não. – Recusais que pernoite aqui? – Não. Diante destas respostas o cavaleiro entrou no castelo e foi conversar com a dama e a tudo o que lhe dizia ela foi sempre respondendo – Não. Quando no fim do serão se despediam para se recolherem a suas câmaras, disse o cavaleiro: – Consentis que eu fique longe de vós? Ela respondeu: – Não. – E que me retire do vosso quarto? – Não. O cavaleiro partiu, e chegou à corte, onde estavam muitos fidalgos conversando ao braseiro, e contando as suas aventuras. Coube a vez ao que tinha chegado, e contou a história do Não; mas quando ia já a contar a modo como se metera na cama da castelã, o marido já sem ter mão em si, perguntou agoniado: – Mas onde foi isso cavaleiro? O outro percebeu a aflição do marido e continuou sereno: – Ora quando ia eu a entrar para o quarto da dama, tropeço no tapete, sinto um grande solavanco, e acordo! Fiquei desesperado em interromper-se um sonho tão lindo. O marido respirou aliviado, mas de todas as histórias foi aquela a mais estimada.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Lenda do Rio Ave (Cidade de Vila do Conde)

Lenda do Rio Ave (Cidade de Vila do Conde)


Diz-se que certo dia, chegou à Serra da Agra uma linda jovem, vinda dos lados da Galiza, com o seu rebanho. Encantada com a Serra decidiu ficar.

Um dia, um cavaleiro avistou a jovem e, de imediato, apaixonou-se por ela. Os dias iam passando e o amor entre ambos aumentava cada vez mais. Brincavam, trocavam juras de amor até que... um dia o cavaleiro teve de partir. No entanto, prometeu à linda jovem que regressaria porque a amava muito.

A donzela esperava-o, mas o cavaleiro nunca mais aparecia. Decidida em encontrar o seu cavaleiro, prometeu a si mesma que se transformaria em ave para voar para junto do seu amado.
O tempo corria e não havia sinal do cavaleiro. A bela jovem começou a ficar cada vez mais triste até que começou a chorar. Chorou tanto que as suas lágrimas formaram, com a ajuda de pequenos riachos, um rio: o Rio Ave.
O rio nascia onde a donzela chorava e desaguava onde o cavaleiro vivia.
Deram o seu nome à Serra - Serra da Cabreira - e ao rio de lágrimas - Rio Ave - já que ela queria ser ave e voar.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

O sal e a água

Um rei tinha três filhas; perguntou a cada uma delas por sua vez, qual era a mais sua amiga. A mais velha respondeu: – Quero mais a meu pai, do que à luz do Sol. Respondeu a do meio: – Gosto mais de meu pai do que de mim mesma. A mais moça respondeu: – Quero-lhe tanto, como a comida quer o sal. O rei entendeu por isto que a filha mais nova o não amava tanto como as outras, e pô-la fora do palácio. Ela foi muito triste por esse mundo, e chegou ao palácio de um rei, e aí se ofereceu para ser cozinheira. Um dia veio à mesa um pastel muito bem feito, e o rei ao parti-lo achou dentro um anel muito pequeno, e de grande preço. Perguntou a todas as damas da corte de quem seria aquele anel. Todas quiseram ver se o anel lhes servia: foi passando, até que foi chamada a cozinheira, e só a ela é que o anel servia. O príncipe viu isto e ficou logo apaixonado por ela, pensando que era de família de nobreza. Começou então a espreitá-la, porque ela só cozinhava às escondidas, e viu-a vestida com trajos de princesa. Foi chamar o rei seu pai e ambos viram o caso. O rei deu licença ao filho para casar com ela, mas a menina tirou por condição que queria cozinhar pela sua mão o jantar do dia da boda. Para as festas de noivado convidou-se o rei que tinha três filhas, e que pusera fora de casa a mais nova. A princesa cozinhou o jantar, mas nos manjares que haviam de ser postos ao rei seu pai não botou sal de propósito. Todos comiam com vontade, mas só o rei convidado é que não comia. Por fim perguntou-lhe o dono da casa, porque é que o rei não comia? Respondeu ele, não sabendo que assistia ao casamento da filha: – É porque a comida não tem sal. O pai do noivo fingiu-se raivoso, e mandou que a cozinheira viesse ali dizer porque é que não tinha botado sal na comida. Veio então a menina vestida de princesa, mas assim que o pai a viu, conheceu-a logo, e confessou ali a sua culpa, por não ter percebido quanto era amado por sua filha, que lhe tinha dito, que lhe queria tanto como a comida quer o sal, e que depois de sofrer tanto nunca se queixara da injustiça de seu pai.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

uma lenda a unir Matosinhos e Santiago

A lenda de Caio Carpo vem do tempo em que o território de Matosinhos ainda não era cristão. Pois casando-se ele, nobre senhor maiato com Cláudia Lobo, gaiense e descendente de um pretor romano, fizeram-se grandes festas junto ao mar. Cayo Carpo e os patrícios que o acompanhavam estavam na Praia a cavalo quando avistaram uma embarcação. O cavalo de Carpo correu para a água, ele tentou pará-lo, mas o cavalo entrou no mar e desapareceu na escuridão. Cayo Carpo galopu mar adentro pelo fundo do mar até entrar numa nau que transportava o corpo de San­tiago para Compostela. Às vestes de noivado de Caio agarram-se-lhe algumas vieiras. Da praia todos os olhavam à distância. Cayo Carpo, ante o cadáver do apóstolo ficou des­lumbrado. Logo ali quis ser baptizado e regressou noutra cavalgada à praia a anunciar a boa nova. E todos os seus convidados, emocionados com o que se passava, se baptizaram à vista do corpo daquele que seria Santiago de Compostela.

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

A Gazela dos olhos de ouro

Há muito tempo, em pleno coração do deserto, Khemma, um velho tuaregue que já não tinha forças para viajar, instalou-se num desfiladeiro povoado de frágeis acácias e de tamarindos. A sua esposa Aicha e o filho Krim acharam aquele lugar terrivelmente hostil. Preferiam viver num oásis ou num povoado acolhedor, mas não contrariavam Khemma; a palavra do chefe de família era sagrada. O pai construiu um abrigo redondo, de adobe, com telhado de juncos, e fez, com o auxílio de ramos, uma cerca para abrigar a camela e a cabra, e arrumar as alfaias. Com fibras secas, ergueu um depósito sobre troncos para que, deste modo, os alimentos ficassem protegidos dos chacais, das hienas e dos abutres. Colocou armadilhas para afastar as raposas do deserto e as víboras de cabeça dura. Nunca o seu filho Krim o ajudou. Preferia dormir à sombra de uma palmeira e regalar‑se com leite de camela bem fresquinho. ― Sou fraco, pai adorado, tão fraco que mal me tenho nas pernas… ― repetia ele ao longo do dia. E Khemma, muitas vezes já sem forças, trabalhava, trabalhava sempre sem nada dizer, fazendo o seu dever, enquanto o filho se lamentava uma e outra vez… Às vezes, o velho tuaregue consultava os amuletos e os talismãs pendurados à cintura e perguntava ao céu: ― Que destino reservas a este preguiçoso? Mas da constelação sagrada da Lebre não vinha resposta. Então murmurava: ― In cha’ Allah, se é assim, é porque Deus assim o quer. Um dia, Khemma descobriu “o olho de água”. Com as mãos escavou uma cova, encontrou lama, de seguida um fio brilhante, e abriu um poço. Brotou um caudal claro e cristalino, formando no areal um lago que transbordava para o canal ressequido. Cresceram tufos de arbustos verdes. A cabra pôde, assim, roer arbustos tenros e doces. Levantou um muro de seixos redondos e lisos para o protegerem das borrascas. Espantou o argali e os lagartos, apanhou gafanhotos, foi buscar lenha, carregou à cabeça pesados cavacos para fazer o fogo. E Khemma, muitas vezes já sem poder mais, trabalhava, trabalhava, sem nada dizer, cumprindo o seu dever, enquanto o filho se lamentava uma e outra vez… ― Sou fraco, querido pai, tão fraquinho… Aicha mantinha o acampamento, preparava as papas de leite e o chá verde, cozia os pães e os crepes de farinha de trigo. À noite, exausto, sentado numa esteira diante das brasas escarlates, o velho tuaregue adormecia sem acabar a refeição e sem olhar para as estrelas. No entanto, gostava muito daquelas luzinhas que piscavam por cima das dunas. Aicha defendia ferozmente o filho das críticas paternas e repetia sem cessar ao marido, a fim de o acalmar das suas impaciências: ― Alá deu-nos o tempo, mas nada disse da pressa… Qualquer dia, vais ver que Krim vai pôr mãos à obra. É um bom rapaz. Vais ter orgulho no teu filho! E Khemma respondia-lhe: ― As luas passam e as pedras não se mexem! As noites e os dias iam decorrendo. Uma bela manhã, Aicha, aborrecida e desanimada, lamentou-se: ― Não temos trigo, nem cevada, nem milho-miúdo, e a aldeia fica tão longe, pelo menos a quatro dias de camela… Krim, como não queria sair da sombra da palmeira, acrescentou com voz arrastada: ― Estou tão fraco, pai e mãe adorados, tão fraco que as pernas mal podem comigo… ― Seria uma tortura infligires ao teu único filho o sol e a longa caminhada até à povoação! ― exclamou Aicha. Krim, tranquilizado, virou-se para o outro lado e adormeceu imediatamente. “In cha’ Allah, se assim é, é porque Deus assim o quer… Mas precisamos de uma terra para cultivar, custe o que custar”, pensou o velho tuaregue. Sem dizer uma palavra, Khemma levantou-se, envolveu um turbante na cabeça, pegou no cajado, na espingarda, no cutelo, encheu o saco de pães e de tâmaras, cuspiu no fogo, apertou os amuletos e os talismãs, e partiu em busca de terra. Deixou a camela no acampamento para não a cansar, perdeu-se nos planaltos rochosos, entrou pelas areias dentro, enfrentou a tempestade, enfrentou os relâmpagos, a trovoada e os raios. A travessia era perigosa, mas o velho tuaregue tinha coragem. E Khemma, muitas vezes já sem forças, caminhava, caminhava sempre, sem dizer nada, enquanto o filho dormia e continuava a dormir… Cheio de sede, apertava o odre e bebia a água límpida do poço, que tanto o reconfortava. Quando a lua ficava avermelhada, montava o bivaque no recôncavo de um rochedo, acendia um fogo com lenha de acácia, enrolava-se na sua comprida túnica e adormecia, abatido de cansaço. Uma noite, quando o firmamento iluminava como em pleno dia, ouviu durante o sono uma vozinha: ― Khemma, Khemma… Primeiro julgou que era um sonho, mas a vozinha insistia: ― Khemma, Khemma, acorda… O tuaregue esfregou os olhos, guardou o cutelo e examinou o céu. No meio daquela extensão de areal e rochedos, quem poderia saber o seu nome? Empoleirada numa laje lisa, ao alcance do seu braço, uma gazela de olhos de ouro, de hastes verdes e brilhantes, deixando atrás de si uma suave claridade, fixava o olhar nele. Khemma, surpreso e desconcertado, ficou sem fala. Notou que a haste direita, escamosa, estava incrustada de esmeraldas. ― Tenho sede, muita sede… ― diz ela. ― Posso beber uma gota da tua água fresca? Khemma não recusou e deitou na palma da mão a água pura do seu poço. A gazela, tal como prometera, bebeu uma gota apenas. ― Quem és tu? ― ousou perguntar Khemma. ― Sou a djenniya* de olhos de ouro. ― Como pudeste encontrar-me neste local? ― Sigo-te desde a noite dos tempos. ― Falas? ― Falo e protejo-te. Só tu podes ouvir-me e ver-me, porque és um ser justo e bom. E diz-me, por que te esfalfas neste deserto a seguir trilhos onde apenas se pode encontrar velhas carcaças e ladrões de rapina? ― Procuro um recanto abrigado das tempestades para cultivar o trigo, a cevada, o milho-miúdo, e alimentar a minha família. A gazela ficou um instante em silêncio. Não tirava os olhos de Khemma. ― Enrola a tua esteira, pega no cajado, na espingarda, no saco, e segue atrás do meu rasto de luz. Levou Khemma até um terreno estaladiço, ao lado de uma falésia desconhecida. ― Tira uma escama de uma das minhas hastes, mas cuidado, escolhe bem… Entra no meu rasto de luz e planta a escama aos teus pés! Khemma, a quem o ouro, as jóias, as pedras preciosas nada interessavam, e queria apenas encontrar um terreno de cultivo, retirou delicadamente uma simples escama da haste esquerda e mergulhou-a na areia. Levantou-se então um vento suave. As ervas ficaram como que envoltas num véu… Khemma, arrastado por um agradável torvelinho, acordou num campo de terra negra, muito fértil, não longe do acampamento. ― Se te convém, ofereço-to ― diz ela. E, sem o mais pequeno ruído, a gazela desapareceu na noite. Quando Khemma contou a sua aventura à mulher e ao filho, apenas ouviu troça e tolices. ― Não estás bom da cabeça… ― gracejou o filho. ― Só nas lendas é que existem deusas! ― rebentou de riso a mulher. ― Viste e falaste com uma gazela invisível? ― troçou de novo Krim. ― Pobre marido! Apanhas sol demais na cabeça… Saturado das pilhérias da mulher e do filho, Khemma dirigiu-se de novo para o seu pedaço de terra, em busca de calma e serenidade. Quando estava a retirar pedras, uma a uma, sentiu atrás de si o bafo quente da sua amiga, a djenniya de olhos de ouro. ― O que fazes aqui? ― perguntou-lhe ela. ― Separo as pedras grandes, para poder abrir regos direitos ― respondeu Khemma. A gazela ficou calada por uns instantes. ― Tira uma escama de uma das minhas hastes mas tem cuidado, escolhe bem… Entra no meu rasto de luz e põe-na em cima da primeira pedra que vires. Khemma, que só se preocupava com a terra negra e fértil, retirou uma escama da haste esquerda e colocou-a em cima da primeira pedra, aos seus pés. Levantou-se então um vento suave. As ervas ficaram como que envoltas num véu… Khemma foi arrebatado por um suave torvelinho e acordou num quintal rodeado de muros altos que desafiavam todas as correntes de ar do deserto. Não restava nem uma só pedra. ― Se te convém, ofereço-to ― diz ela. E, sem o mais pequeno ruído, desapareceu na luz do sol. O tuaregue regressou tão cedo ao acampamento que a mulher estranhou. Ele não lhe deu nenhuma explicação. Foi deitar-se à sombra da palmeira, descansou finalmente diante das estrelas e rezou às escondidas. No dia seguinte, Khemma voltou com uma picareta e começou a escavar. ― Que fazes tu aí? ― perguntou-lhe a gazela. ― Procuro água para regar as minhas futuras plantações e estou a abrir regos. A gazela ficou um instante em silêncio. ― Tira uma escama de uma das minhas hastes, mas tem cuidado, escolhe bem… Entra no meu rasto de luz e molha essa escama na água límpida do teu odre. Khemma, que só se preocupava com a irrigação do quintal, retirou-lhe uma escama da haste esquerda e molhou-a. Levantou-se então um vento suave. As ervas ficaram como que envoltas num véu… Khemma foi arrebatado num doce torvelinho e acordou a ouvir o canto milagroso da água nos regos. ― Se te convém, ofereço-to ― diz ela. E, sem ruído, desapareceu no brilho das rochas. Nos dias seguintes, quando o velho tuaregue chegava, a gazela estava à sua espera e fazia-lhe sempre a mesma pergunta: ― Que fazes aí? ― Vou lavrar e plantar depois. E ajudava-o a lavrar, a semear, a regar. Quando chegou o tempo das longas caravanas que atravessam o deserto, Khemma ceifou o trigo, a cevada, o milho, colheu legumes maravilhosos e deu a provar à gazela de olhos de ouro os seus primeiros frutos. Khemma já não podia passar sem a djenniya. Juntos conversavam, e dialogavam longamente com os astros. Mas, no acampamento, Aicha e o filho não acreditavam no encontro do velho tuaregue e riam-se dele. ― Ele fala sozinho e até muito tarde durante a noite! Ainda bem que trabalha como um danado ― diziam eles. Na época das promessas e dos amores amontoavam-se cestos de legumes e sacos de cereais no acampamento. ― Que vamos fazer de tudo isto? ― perguntou Aicha, preocupada. O pai chamou o filho e pediu-lhe que fosse ao mercado trocar os seus produtos por novas alfaias, especiarias, rolos de tecido, e tabaco, e que trouxesse mais uma cabra. ― Segues ao lado da camela, porque vai muito carregada! Tem cuidado, não a canses e não a montes! ― Estou tão fraco que as minhas pernas… Não chegou a acabar a frase, tal foi a ira que se apoderou de Khemma. Cheio de medo, Krim, que nunca tinha visto o pai naquele estado, tomou imediatamente o caminho da aldeia. Krim ia à frente, a guiar a camela. Depois, pouco a pouco, pôs-se a andar ao seu lado, a aproveitar a sombra da bossa e, mais tarde, começou a segurar-se na cauda e era ela que o puxava. Assim passou a primeira duna e, com muita dificuldade, a segunda. Arrastava-se em vez de avançar, sempre a beber da cabaça e a gemer. Nos cimos que o separavam da terceira duna, a garganta ardia-lhe e a língua estava seca. De um só trago, bebeu toda a reserva de água. À hora em que o sol está mais alto e tudo o que vive no deserto se esconde, Krim fez uma paragem. Encolheu-se na sombra de uma fenda. “Se a camela me transportasse, quem é que viria a saber?” pensou ele. “E se…” Saltou de alegria, ante a ideia sublime que o assaltou. Descarregou um saco de trigo e enterrou-o. “Direi ao meu pai que os comerciantes eram avarentos e não me deram quase nada em troca.” Saltou para cima da sela. A camela deu um passo e parou. Krim, teimoso e decidido a não caminhar, enterrou um segundo saco de milho. “Direi ao meu pai que os comerciantes eram ladrões da pior espécie…” Saltou para cima da sela. A camela deu um passo e parou. Krim enterrou um terceiro e um quarto saco. “Direi ao pai que é preciso enforcar os ladrões dos comerciantes, para que os abutres lhes arranquem os olhos!” Saltou para cima da sela. A camela deu quatro passos e voltou a parar. Decidido a fazer-se transportar até ao mercado custasse o que custasse, espalhou todo o carregamento e escondeu os sacos debaixo de pedras. A fêmea, livre de todo o fardo, leve como um antílope, nem esperou que ele lhe subisse para o lombo. Farejou ao longe o gorgolejar de uma fonte, o cheiro das silvas adocicadas, e desatou a correr. Krim foi incapaz de a agarrar. De repente, levantou-se uma tempestade de areia. As dunas deslocaram-se como ondas movediças, apagando, para o infeliz viajante, todas as marcas e todas as referências. Perdido no areal e sem montada, Krim conseguiu mesmo assim arrepiar caminho até ao acampamento. Khemma, ao ver o filho regressar despojado, envergonhado e a chorar, pensou logo que fora atacado por um bando de ladrões. Consolou-o como pôde, com palavras que o sossegaram. Mas Krim confessou a sua malvadez. Khemma foi acometido por uma onda de ira louca, pegou no cajado, volteou-o no ar e bateu, bateu, bateu no pobre rapaz. ― O que estás a fazer? ― perguntou a gazela. ― Estou a castigar o meu filho que me desobedeceu. Perdeu todas as colheitas e arruinou o fruto do meu trabalho. ― Isso de nada serve. É melhor encheres-lhe o saco de provisões, dares-lhe reservas de água para uma semana e mandá-lo procurar a camela e as mercadorias. Esse castigo ser-lhe-á realmente útil. Compreenderá assim a sua negligência! Lembra-te de que a cólera é a mãe de todas as loucuras! Khemma, perante tais palavras, parou imediatamente de bater em Krim. Aicha, como não queria deixar partir o filho sozinho, foi com ele. Passado o acampamento, Krim começa a lamentar-se: ― Sou tão fraco, mãe adorada, tão fraco, que as pernas… E Aicha aliviou-o das reservas de água. Antes de chegar ao trilho grande, recomeçou com os seus lamentos: ― Sou tão fraco, mãe adorada… E Aicha aliviou-o do saco das provisões. À terceira duna, depararam com os cestos de legumes e frutos roídos pela bicharada e, mais adiante, os sacos de trigo e de milho vazios, que tinham sido o regalo dos escorpiões e das raposas do deserto. Quanto aos géneros alimentícios, estavam todos espalhados no meio dos grãos de areia. O desânimo invadiu Aicha e o filho. ― É preciso encontrarmos a camela, custe o que custar. Se a levarmos para casa, talvez se acalme a cólera do teu pai e ele nos perdoe… ― Mas onde é que poderá estar esse maldito animal? ― vociferou Krim, completamente desesperado. Foi então que apareceu diante deles a gazela de olhos de ouro. Viram que Khemma não estava louco, que a sua história não era uma miragem distante. ― Tenho sede, muita sede… ― diz ela. ― Posso beber só uma gota da vossa água fresca? Aicha espremeu o odre de pele todo, mas nem uma só gota caiu. ― Vês ― murmurou Krim ― nem sequer lágrimas temos nos olhos para chorar! ― Conheces-nos? ― perguntou a mãe. ― Sigo-vos e protejo-vos desde a noite dos tempos. Agora podeis ver-me e ouvir-me, porque julgo que sois bravos nómadas. Sei o que procurais e posso ajudar-vos, se quiserdes. Perante uma tal oferta, nem foi preciso que a gazela de olhos de ouro repetisse o que acabara de dizer. A djenniya ficou por um instante em silêncio, depois dirigiu-se a Krim: ― Tira uma escama de um das minhas hastes, mas cuidado, escolhe bem… Entra no meu rasto de luz, atira-a de seguida na direcção da Constelação de Lebre e encontrarás a camela. Mas Krim só tinha olhos para a haste da direita, onde as esmeraldas brilhavam. Sem hesitar nem reflectir, arranca com toda a força a escama engastada na maior pedra preciosa. O castigo não se fez esperar. Surgiram todos os ventos do deserto num furacão que varreu os dois infelizes de cima dos elevados planaltos e os arrastou até um grande rio, lançando-os no oceano. Durante esse tempo, Khemma esperava o regresso da mulher e do filho. Passavam os dias e a tristeza apoderava-se do velho tuaregue. Às vezes, subia ao cimo da falésia e passava horas a olhar as infinitas extensões de areia. Mas nenhuma poeira surgia no horizonte. Dirigiu-se às estrelas; os astros não lhe responderam. Em vão apertou os amuletos e os talismãs. Não obteve nenhuma resposta. Então sentou-se no meio do quintal e esperou. Viu as aves debicarem os últimos grãos de trigo. ― Se perdi tudo, a família, os bens, é porque Alá assim o quis ― lamentou-se ele. Permaneceu assim todo o Inverno. Depois, nos primeiros dias do regresso das longas caravanas em direcção ao Sul, viu uma estranha luz penetrar no seu corpo e sentiu o bafo quente da gazela de olhos de ouro. ― Não fiques triste, Khemma ― diz-lhe ela baixinho. ― Em cada respiração, em cada instante, é preciso começar de novo, recomeçar tudo. Estou aqui e protejo-te. Dou-te esta escama da minha haste direita. Tem uma esmeralda. Coloca-a na tua face e formula um desejo. Serás logo atendido. Delicadamente, Khemma pôs a esmeralda na face e fechou os olhos. Levantou-se então um vento leve e suave. As ervas ficaram como que envoltas num véu… Sentiu-se arrebatado num longo sonho e o seu desejo foi atendido. Khemma acordou na esteira do seu acampamento, diante de brasas escarlates. Aicha tinha preparado um maravilhoso chá com bolos de festa. O filho Krim sorria-lhe sem gemer nem se lamentar. A camela e a cabra pastavam calmamente. ― Se gostas desta vida, ofereço-ta ― diz a djenniya de olhos de ouro. Khemma respondeu que sim e, sem ruído, a gazela desapareceu na lua de Abril. O velho tuaregue resplandecia de felicidade. Sobre os planaltos, uma última tempestade rugiu e o sol brilhou para sempre. * Para os tuaregues, a djenniya, ou gazela de olhos de ouro, é um génio bom e protector. Jean Siccardi

domingo, 22 de janeiro de 2017

Apenas um Rapaz

Era uma vez um rapaz bravio que gostava de pregar partidas e fazer malandrices, só por embirração. Era muito antipático este rapaz.
Mas emendou-se. Eu conto como foi.
Um dia, por maldade, deu-lhe na cabeça atormentar uma pobre velhota, que vivia numa casinha pobre, à beira do povoado. Foi para uma pedreira que havia perto e pôs-se a atirar pedras e pedregulhos, que iam cair no quintal da velhota. Para o que lhe havia de dar!?
No fim do seu feito, já cansado, aproximou-se da casa da velhinha, para ver de perto os resultados da sua proeza. Andava a velhinha a recolher as pedras, espalhadas pelo quintal.
— Foi uma bênção que me caiu do céu — dizia a velhinha. — Precisava, há muito tempo, de consertar o muro do quintal, mas não tinha forças para trazer tantas pedras. Se não fosse esta avalanche…
O rapaz ficou de boca aberta. E mais sem fala ficou quando a velhinha lhe propôs:
— Bom rapazinho importas-te de me ajudar a consertar o muro?
Ele, que tinha de fazer de conta que era um bom rapazinho, não teve outro remédio. Passou o resto do dia a carregar pedras, as pedras que ele lançara do alto do monte.
No fim da tarefa, a velhota agradeceu-lhe o trabalho e deu-lhe um grande boião de mel. O rapaz lá se foi, cansado e a lamber os beiços, um tanto confundido. À noite, quando se deitou, estava cá com uma dor nas costas, que não lhes digo nada! Mas regalado com o mel que a velhinha lhe dera.
Ora pois! Serviu-lhe de emenda. Mudou de intenções. Não posso garantir se, dessa vez em diante, nunca mais pregou partidas. Um diabinho não se transforma de repente num santinho. É exigir demais. Mas, na verdade, deixou-se de brincadeiras tolas.
Sem que possa ser considerado um virtuoso rapazinho, também já não é um venenoso rapazote. Nem rapazinho, nem rapazote. Apenas um rapaz. Nem muito mau, nem muito bom. Como quase toda a gente, aliás.

António Torrado

sábado, 21 de janeiro de 2017

Bolacha Maria

Era uma vez uma bolacha Maria que disse que Maria, só Maria, não chegava.
Queria ser, ao menos, Maria Emília. Bolacha Dona Maria Emília, com todo o respeito.
As outras companheiras do pacote fizeram-lhe a vontade. Mas, quando uma bolacha Maria começa com exigências, oh! Oh! Nunca mais pára…
— Pensando melhor, não dispenso os apelidos. Quero passar a ser tratada por Dona Maria Emília de Melo e Sousa Trigo de Reboredo Farinha.
Um nome tão comprido e retorcido não é fácil de decorar. Algumas das simplesmente Maria chamavam-na de Maria de Trigo Melo e Sousa não sei quê Farinha. Outras, de Maria Reboredo Farinha de Melo Trigo de Sousa Emília. E as mais esquecidas, apenas de Maria Farinha de Trigo, o que a punha fula.
— Distingam-me. Separem-me. Marquem a diferença. Eu sou uma bolacha especial. Uma bolacha Dona Maria Emília de Melo e Sousa Trigo de Reboredo Farinha.
— Tá bem — diziam as outras, que não eram de despiques.
Alguém abriu o pacote e começou a provar daquelas bolachas torradinhas e saborosas. Elas não se importavam. Sabiam para o que estavam destinadas e davam-se por contentes. Proporcionar um pouco de prazer ao paladar era a vocação delas.
A Maria que não ia com a outras, por sinal a última do pacote, não seguiu o caminho das demais. Ficou a aguardar novo acesso de apetite de quem, daquela vez, já estava de barriga cheia. Ficou sozinha. Ficou esquecida.
Amoleceu.
Quando, passado dias, deram por ela, disseram:
— Esta bolacha já está mole. Não presta.
E chamaram:
— Bobi, anda cá. Toma.
O Bobi, de rabinho a abanar, muito saracoteante e salivante, veio, tomou, e foi assim que a excelentíssima bolacha Dona Maria Emília de Melo e Sousa Trigo de Reboredo Farinha acabou na boca do cão.
Esta história é pequenina e sabe a pouco? Pois é. O Bobi também achou o mesmo.
António Torrado

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

MA LIANG E O SEU PINCEL MÁGICO (Uma história do povo Han) - Contos Populares Chineses -
Última parte

    ...E ordenou a Ma Liang que pintasse o mar.
    Ma Liang pegou no pincel mágico e um mar sem limites, claro e nítido apareceu diante dos olhos do imperador. A sua superfície era calma e brilhava como um espelho de jade.
    — Porque é que não há peixes neste mar? - perguntou o imperador.
    Ma Liang deu umas pinceladas e, imediatamente, surgiram peixes de todas as cores do arco íris. A abanar as caudas brincaram alegremente durante alguns momentos e depois afastaram-se, nadando pelo mar fora.
    O imperador tinha-os observado com o maior prazer; por isso, quando eles começaram a nadar cada vez para mais longe, pediu a Ma Liang:
    — Pinta depressa um barco! Quero ir para o mar e seguir aqueles peixes.
    Ma Liang pintou um enorme navio de grandes velas e nele embarcaram o imperador, a imperatriz, príncipes, princesas e muitos ministros. Depois, com algumas pinceladas, desenhou o vento, que fazendo surgir no mar uma bonita ondulação, permitiu que o barco partisse.
    Mas o imperador achou que iam muito devagar. E pondo- se em pé na proa, gritou:
    — Faz o vento soprar com mais força! Mais força!
    Alguns traços mais vigorosos do pincel mágico de Ma Liang tornaram o vento mais forte. O mar ergueu-se encapelado e as velas brancas enfunaram-se é o barco era impelido para o alto mar.
    Ma Liang esboçou ainda mais algumas pinceladas e, então, o mar começou a rugir, as vagas sucediam-se e o navio começou a adornar.
    — Já chega de vento! - gritava o imperador o mais alto que podia. — Basta!
    Mas Ma Liang não lhe dava ouvidos e continuava de pincel em punho. O mar era fustigado com fúria e as vagas iam rebentar no tombadilho.
    O imperador, molhado até aos ossos, agarrou-se ao mastro, acenando de punho fechado para Ma Liang e aos gritos.
    Mas Ma Liang fingia nada ouvir e continuava a desenhar o vento. Um furacão provocou nuvens negras que escureceram o céu; ondas violentas sobrepunham-se cada vez mais alto, indo despedaçar-se, uma após outra, sobre o barco. Por. Fim o navio voltou-se e, despedaçado, afundou-se. O imperador e os seus ministros foram cair no fundo do mar.
    Depois da morte do imperador, a história de Ma Liang e do seu pincel mágico correu mundo. Mas o que foi feito de Ma Liang? Nunca ninguém o soube ao certo.
    Há quem diga que regressou à aldeia natal para junto dos camponeses seus amigos.
    Outros dizem que vagueou por toda a terra, pintando para os pobres por toda a parte onde chegava.
FIM
   

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

MA LIANG E O SEU PINCEL MÁGICO (Uma história do povo Han) - Contos Populares Chineses -  3ª Parte

....Um dia, depois de ter pintado um grou sem olhos...não teve cuidado e deixou cair tinta na cabeça da ave, precisamente no sítio onde deviam estar os olhos; instantaneamente, o grou abriu os olhos, bateu as asas e partiu voando. Logo toda a gente na cidade ficou excitada. E houve um bisbilhoteiro que foi relatar o facto ao imperador, que imediatamente ordenou que os guardas trouxessem Ma Liang à corte. Ele não queria ir; mas com belas promessas e ameaças veladas lá o conseguiram levar.
    Ma Liang tinha ouvido contar muitas histórias sobre a crueldade do imperador para com os pobres e odiava-o do fundo do seu coração. Por isso, quando o imperador lhe ordenou que pintasse um dragão, em vez disso pintou um sapo; quando o imperador lhe ordenou que pintasse uma fénix, pintou um galo. Esse sapo horrível e o ascoroso galo puseram-se aos saltos e a bater as asas em volta do imperador, sujando e molhando tudo, até que todo o palácio acabou por ficar fedorento. Então, o imperador, na maior das fúrias, ordenou aos seus guardas que metessem Ma Liang na prisão e lhe tirassem o pincel mágico.
    De posse do pincel mágico, o imperador experimentou ele próprio pintar. Primeiro pintou uma montanha de ouro. Depois, achando que uma montanha de ouro não era o bastante, acrescentou outra é mais outra, até que o quadro ficou uma massa de montanhas. Mas quando estava terminado, sabem o que aconteceu àquelas montanhas de ouro? Transformaram-se num monte de rochas. E, como eram muito pesadas no cimo, desmoronaram-se e quase esmigalharam os pés do imperador.
    Nem mesmo assim o imperador se curou da sua ganância. Como não conseguira pintar as montanhas de ouro, decidiu pintar barras de ouro. Pintou uma barra; mas pareceu-lhe demasiado pequena. Então, pintou uma maior; mas está ainda lhe pareceu também pequena. Por fim, pintou uma barra de ouro muito comprida. Mas quando tinha acabado a pintura, sabem o que aconteceu? A barra de ouro transformou-se numa serpente enorme, que avançou para ele com a grande boca vermelha toda aberta; e o imperador desmaiou de medo. Felizmente os seus servidores vieram rapidamente em seu auxílio, de contrário teria sido engolido por aquele terrível monstro.
    Verificando que não podia servir-se ele próprio do pincel mágico, o imperador libertou Ma Liang, ofereceu-lhe ouro e prometeu dar-lhe uma princesa em casamento.
    Ma Liang, que tinha forjado um plano, fingiu que aceitava todas as propostas. O imperador ficou muito satisfeito e restituiu-lhe o pincel mágico.
    — Se ele pintar uma montanha, - pensou o imperador - podem sair de lá animais selvagens. Melhor será que pinte o mar!
   E ordenou a Ma Liang que pintasse o mar.
   CONTINUA

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

MA LIANG E O SE PINCEL MÁGICO ( Uma história do povo Han) - Contos Populares Chineses - 2ª Parte

....Mas nenhum segredo se pode guardar para sempre...
    A notícia do pincel mágico de Ma Liang chegou em breve aos ouvidos de um rico senhor da aldeia; e esse senhor mandou dois dos seus homens trazerem-lhe o rapaz e obrigou-o a pintar para ele.
    Embora Ma Liang fosse ainda um rapazinho, era muito corajoso. Tinha observado bem todos aqueles ricos e, quer o senhor o ameaçasse ou o lisonjeasse, recusava-se a pintar para ele uma única figura. O senhor fechou-o num estábulo para o deixar morrer à fome.
    Três dias depois começou a nevar fortemente e a neve formava uma camada espessa no chão.
    Pensando que Ma Liang já devia ter morrido de frio, senão de fome, o senhor dirigiu-se ao estábulo para o confirmar. Quando se aproximou da porta, viu através das frinchas brilhar a luz vermelha duma fogueira e sentiu um cheiro delicioso a comida. Espreitando por uma fresta viu, nem mais nem menos, Ma Ling a aquecer-se junto de um grande fogão e a comer bolos quentes! O senhor mal podia crer nos seus olhos. Donde tinham vindo o fogão e os bolos? Então deduziu que Ma Liang os tinha certamente pintado. Tremendo de cólera, ordenou aos seus homens que matassem Ma Liang e se apoderassem do pincel mágico.
    Mas no momento em que uma dúzia de homens dos mais terríveis entrava no estábulo, Ma Liang já tinha desaparecido da vista é apenas encontraram uma escada encostada à parede, pela qual ele tinha fugido. O senhor não esperou um segundo para subir a escada em sua perseguição, mas tropeçou e caiu antes de chegar ao terceiro degrau. Quando se pôs de novo em pé, a escada tinha desaparecido.
    Depois de fugir de casa do senhor, Ma Liang compreendeu que não podia esconder-se na aldeia porque isso só traria dissabores aos amigos que lhe dessem abrigo. Tinha de partir para longe. Fez um aceno de despedida para as casas que lhe eram familiares e murmurou: 'Adeus, queridos amigos!'
    Pintou então um belo cavalo, montou e partiu a galope pela estrada fora.
    Não tinha ido muito longe, quando ouviu um burburinho atrás de si; virou a cabeça e viu que o senhor e cerca de vinte dos seus lacaios o perseguiam a cavalo. Traziam archotes acesos e na mão do senhor brilhava uma espada.
    Não tardaram a aproximar-se. Ma Liang desenhou tranquilamente um arco e uma flecha com o seu pincel mágico e ajustou a seta ao arco. 'Zás'. A seta atravessou a garganta do senhor que caiu do cavalo de cabeça para baixo. Então, Ma Liang chicoteou o seu próprio corcel de tal maneira que ele voou como se tivesse asas.
    Durante muitos dias e muitas noites, Ma Liang galopou pela estrada fora sem parar, até que chegou a uma cidade onde decidiu permanecer; estava agora bem longe da sua aldeia natal. Como não conseguiria arranjar trabalho naquela cidade, tinha de pintar alguns quadros e vendê-los no mercado. Mas para que o seu segredo não fosse descoberto, teve o cuidado de não deixar que os seus desenhos adquirissem vida, desenhando para isso, pássaros sem bico ou outros animais sem uma perna.
    Um dia, depois de ter pintado um grou sem olhos....... CONTINUA

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

MA LIANG E O SEU PINCEL MÁGICO (Uma história do povo Han) - Contos Populares Chineses - 1ª parte

    Era uma vez um rapazinho chamado Ma Liang que perdera o pai e a mãe quando era ainda muito pequeno. Para ganhar a vida tinha de apanhar lenha e arrancar o joio. Era um rapaz muito esperto e desejava ardentemente aprender a pintar, mas nem sequer tinha dinheiro para comprar um pincel.
    Um dia, passou por uma escola particular quando o professor estava a pintar e ficou fascinado a ver as manchas que o pincel fazia. Sem dar por isso, tinha entrado na escola.
    — Gostava tanto de aprender a pintar - disse ele. Por favor, empreste-me um pincel!
    — O quê! - o professor olhou-o atónito. — Um mendigo querer ser pintor? Deves estar a sonhar! – e pôs o rapaz na rua.
    Mas Ma Liang tinha uma grande força de vontade. — Porque não hei-de aprender a pintar, embora seja pobre? - disse para consigo.
    Decidiu que havia de aprender e todos os dias praticava tenazmente. Quando subia à montanha para apanhar a lenha, servia-se de um ramo para desenhar pássaros na areia.; quando ia para o rio cortar juncos, molhava os dedos na água e traçava peixes nas rochas; quando chegava a casa, copiava nas paredes da barraca os seus poucos tarecos, até que as quatro paredes ficaram cobertas de desenhos.
    O tempo corria veloz; e como Ma Liang não deixava de passar um único dia sem se exercitar no desenho, fez evidentemente rápidos progressos. As pessoas que viam os seus desenhos quase esperavam que as aves voassem e os peixes nadassem, tão reais eles lhes pareciam. Mas Ma Liang continuava sem ter um pincel! Muitas vezes pensava como seria feliz se tivesse um.
    Uma noite, cansado de ter trabalhado e desenhado todo o dia, Ma Liang adormeceu mal se deitou na sua enxerga. Então apareceu-lhe um velho com uma comprida barba branca que lhe deu um pincel.
    — Este pincel é mágico, - disse o velho. — Serve-te dele com cuidado.
    Ma Liang pegou no pincel. Era de ouro brilhante e muito pesado.
    — Que belo pincel! - exclamou ele feliz. — Muito e muito obrigado...
    Ainda Ma Liang não tinha acabado de lhe agradecer, já o velho de barba branca desaparecera. O rapaz acordou em sobressalto. Então tinha sido um sonho! Mas como podia ser um sonho, se ele tinha ali na mão o pincel mágico? Estava maravilhado.
    Pintou um pássaro com o pincel mágico e o pássaro bateu as asas, ergueu-se no ar e começou a cantar alegremente para ele o ouvir. Pintou depois um peixe com o seu pincel mágico e o peixe sacudiu a cauda, mergulhou no rio e fez acrobacias na água para ele ver. Sentia-se radiante.
    Com este pincel mágico, Ma Liang pintava todos os dias coisas para a gente pobre da sua aldeia: um Adão, uma enxada, um candeeiro de petróleo ou um balde para qualquer família que não possuísse nenhum.
    Mas nenhum segredo se pode guardar para sempre...... CONTINUA
   

sábado, 14 de janeiro de 2017

A árvore que cantava

A árvore que cantava
Era Janeiro, uma daquelas manhãs claras e secas que fazem lembrar velhos montanheses de bigodes gelados e olhos piscos do sol. Nevara. Grandes e densos flocos tinham caído durante toda a noite. Depois, com a chegada do dia, um forte sopro de vento norte limpou o céu.
A floresta, que começa atrás da casa e se estende pela montanha, estava completamente adormecida, envolta num grande silêncio gelado. Por entre as árvores estendiam-se sombras azuis. Os pinheiros vergavam sob a carga da neve, pois o vento da madrugada soprara apenas o suficiente para afastar as nuvens.
Isabel e Gerardo viviam ali, junto do bosque, em casa dos avós. Era uma casinha cinzenta de portadas verdes. Lá longe, na margem gelada da ribeira, ficava a aldeia, que mal se via naquela manhã, bem como o caminho que seguia ao longo dos campos e atravessava a pradaria.
Da janela, as duas crianças esforçavam-se por segui-lo com o olhar. Viam-no bem até à primeira curva, junto do grande ácer morto há dois anos, e que o avô ainda não tinha decidido cortar, mas, para lá dele, tudo se confundia.
Enquanto estavam assim, de nariz colado ao vidro, Isabel e Gerardo viram passar um pássaro, depois outro e depois um bando que se empoleirou na ramada fazendo cair montinhos de neve.
— Estão com frio — disse Isabel. — É preciso dar-lhes sementes ou pão para eles comerem.
Arranjou alguns grãos e Gerardo abriu a janela.
— Fecha depressa — gritou o avô — que o Inverno vai entrar-nos pela casa dentro!
As crianças puseram-se a rir. Como se o Inverno pudesse entrar numa casa!
Isabel atirou os grãos para a vereda que o avô tinha varrido para poder ir buscar lenha. A avó pôs-se a tossir e levantou as tampas redondas do fogão para lá meter um enorme cavaco. Depois de fechada a janela, dois pássaros desceram da latada. Os outros pareciam inquietos mas, ao verem que nada se mexia, voaram também, enquanto outros desciam do telhado, direitinhos, quase sem baterem as asas.
— A comida não vai chegar para todos — disse Isabel. — Estão a vir cada vez mais.
— Chega! Já chega! — gritou a avó. — Se lhes deres tudo, as minhas galinhas é que vão ficar sem nada!
— E se continuas, vais atrair todos os pássaros da floresta — disse o avô exagerando.
Isabel lá se conformou e voltou para a janela. Ficou bastante tempo ao lado do irmão, limpando o vidro embaciado quando deixava de conseguir ver. De repente, agarrou no braço do irmão e disse, apontando:
— Olha para o caminho!
Gerardo levantou os olhos. Ao fundo, para lá do ácer morto, um curioso animal avançava sobre a neve. Parecia o coelhinho de corda mecânico que o Pai Natal tinha trazido a Gerardo, alguns anos atrás. Saltitava, vacilava da direita para a esquerda e parava a todo o momento, exactamente como o brinquedo. Estava vestido de pêlo cinzento e tinha orelhas compridas, que se tocavam no cimo da cabeça, tal e qual o coelho.
Esta aparição era tão surpreendente que as crianças esqueceram as aves e ficaram de boca aberta a observar aquele estranho animal cujos olhos, por vezes, reflectiam luz.
Quando o coelho, que caminhava apenas com as patas de trás, chegou junto da sebe que circundava o jardim, as crianças só lhe viram a cabeça.
— Parece que vem para aqui! — murmurou Gerardo.
— É verdade! Está a contornar o jardim.
O coelho desapareceu e seguiu-se um longo silêncio angustiante. As crianças sustinham a respiração, à escuta. Em breve ouviram-se passos no degrau de pedra, e os pássaros voaram tão rápido que as crianças se assustaram.
— Não ouviram nada? — perguntou o avô.
Os dois pequenos abanaram a cabeça.
— O que poderá ser? — disse a avó. Àquela hora o carteiro ainda estava longe. Os avós não tinham visto nada da estranha figura e os pequenos não ousavam responder. Não podiam dizer: “É um coelho mecânico, grande como um homem, que vem sozinho e está a bater as botas na soleira da porta!”
Sentiu-se ainda um roçar na parede, depois ouviu-se bater à porta. Os avós olharam um para o outro e depois para a porta. Como voltaram a bater com mais força, o avô gritou por fim:
— Entre!
A porta abriu-se lentamente e uma baforada gelada entrou na cozinha. Desta vez era o coelho quem trazia o Inverno no pêlo cinzento. Porque era mesmo ele que se encontrava ali, de pé, na soleira da porta, surpreendido com o calor e o cheiro do lume onde se cozinhava carne de coelho verdadeiro.
A avó correu a fechar a porta. E não é que o coelho se põe a falar!…
— Bom dia, bom dia — disse ele. — Venho muito cedo, desculpem, mas…
Os pêlos cinzentos afastam-se à altura do rosto, aparecem uns grandes óculos, depois um nariz muito vermelho, depois uns bigodes espetados como uma vassoura de crinas de cavalo e a seguir uma cara de barba branca, parecida com a do avô.
— Mas, é o Vicente! — disse o avô, admirado. — É o Vicente!
E era verdade! Era mesmo o Vicente. E só quando tirou o boné de orelhas levantadas e despiu a peliça cuja gola lhe tapava os olhos é que as crianças tiveram a certeza de que o coelho mecânico era um homem. Nunca o tinham visto, mas o avô já lhes tinha falado muitas vezes daquele velho amigo.
O tio Vicente limpava os óculos, limpava as lágrimas que lhe corriam dos olhos e repetia:
— Quase nem vos vejo. O calor, depois do frio, faz-me sempre chorar. E os óculos ficam embaciados.
Não via, mas podia falar e ouvir. Rapidamente se sentou ao canto da lareira junto do avô e pôs-se a contar histórias do seu tempo de rapaz. O avô também contava as suas. Falavam ao mesmo tempo, não ouviam o que cada um dizia, mas ambos pareciam felizes.
As crianças tinham voltado para a janela. Já não havia grãos, mas algumas aves teimavam em procurá-los. Uma sombra passou sobre a neve, um pássaro grande, preto, baixou para ir pousar em cima da árvore morta. Gerardo voltou-se e disse:
— Avô, está uma águia em cima da árvore morta! Anda depressa! Anda ver depressa, avô!
O avô nem se mexeu, mas Vicente levantou-se e juntou-se às crianças. Com os óculos redondos, e agora já limpos, em cima do nariz, disse:
— Não é uma águia, é um corvo. E a árvore é um ácer, mas não está morta.
Do seu sofá, o avô gritou:
— Já está morta há dois anos. E, mal possa, vou arrancá-la.
— Asseguro-te que não está morta — afirmou Vicente. — As árvores nunca morrem…
— Não me digas uma coisa dessas! — disse o avô admirado. — Garanto-te que já passaram duas primaveras sem ela dar rebentos. Digo-te que está morta e pronta para ser queimada.
Vicente olhou-os a todos mas dir-se-ia que não estava a vê-los, que fixava outra coisa distante, para lá do fim da planície.
— Repito que as árvores nunca morrem — disse. — E vou provar-vos. Hei-de prová-lo, fazendo cantar o vosso velho ácer.
O avô pareceu não acreditar, mas calou-se. Vicente era seu amigo, por isso não queria contrariá-lo.
As crianças entreolharam-se. Será que tinham ouvido bem?
Vicente voltara a sentar-se no cadeirão e retomara já o fio das suas histórias. Vai ficar por ali até ao anoitecer e partilhar com eles a refeição do meio-dia.
Quando Vicente se vai embora, o avô acompanha-o até ao ácer. Andam em volta da árvore como se jogassem às escondidas, e parecem minúsculos à luz do crepúsculo que afasta tudo e confere à paisagem o aspecto de um postal de boas-festas.
Mal o avô regressa, as crianças correm para ele e perguntam:
— Então, o que é que ele disse?
— O Vicente teima que o ácer não está morto. E até me prometeu que ia fazê-lo cantar.
— Mas como, avô? Como é que ele irá fazer?
— Esse é o segredo dele. Mais tarde verão. Não posso dizer-vos nada porque ele nada me explicou. É preciso esperar.
As crianças bem insistem, mas o avô não diz mais.
O tempo passou. A neve derreteu e as chuvas da Primavera limparam as últimas marcas do Inverno no flanco da colina. As crianças nunca mais pensaram no tio Vicente. Porém uma tarde, ao regressarem da escola, aperceberam-se de que faltava qualquer coisa na paisagem. Era o ácer. No seu lugar havia apenas um cepo enorme, alguns ramitos, pedaços de casca e serradura semelhante a um montinho de neve que tivesse ficado ali esquecido pelo sol.
— Deve ter sido o avô que cortou a árvore — disse Gerardo. — Não devia ter feito isso. O senhor Vicente tinha prometido que ia fazê-la cantar.
— E tu acreditas nisso? — perguntou Isabel.
— Claro, porque foi o senhor Vicente que prometeu.
— Mas o avô acha que uma árvore morta só pode cantar no lume!
— Não quero que a queimem — disse o rapaz. — Anda, vem depressa!
Desataram a correr para casa. Pousaram as pastas ao fundo das escadas e escaparam-se para a casa da lenha, uma pequena cabana de madeira que o avô construíra ao fundo do quintal.
A porta estava escancarada e a carroça de mão parada diante da entrada. As crianças correram a toda a velocidade e chegaram coradas e ofegantes. O avô e Vicente saíam da casinha da lenha. Um troço do ácer ainda estava em cima da carroça. As crianças olharam para Vicente com ares de reprovação nos seus olhos claros, mas o velhote sorriu-lhes por baixo do bigode. Aproximou-se do carro e pôs-se a acariciar o tronco do ácer como se fosse um cão.
As mãos do senhor Vicente são grandes, com dedos compridos e grossos e unhas levantadas na ponta, com uma forma esquisita. Quando Vicente acaricia a madeira parece que está lixá-la, de tão ásperas que são as suas mãos. Quando cumprimenta, dir-se-ia que traz calçadas luvas de ferro, como as que usavam os cavaleiros na Idade Média.
Acariciou a madeira e piscou o olho, dizendo:
— Não se preocupem, ele cantará. Prometi e cumpro sempre as minhas promessas.
— Há-de cantar no fogão — resmungou o avô. — Como todas as árvores que morrem. Fazê-lo cantar assim é fácil.
O avô devia estar a brincar! Mas Vicente deu ares de se zangar.
— Cala-te! — gritou ele. — Tu não percebes nada. Eu cá digo-te que vai cantar melhor do que quando estava vivo, com os pés enterrados e a cabeça ao sol. Melhor do que nos dias em que estava carregado de pássaros e era sacudido pelo vento.
As crianças escutavam aquela linguagem curiosa. Como pareciam duvidar, Vicente agarrou cada uma pelo braço e apertou-as com as suas mãos duras. Apertava muito, quase magoava, mas aquela força dele dava muita segurança. Virou-se para a carroça e continuou a apalpar o grande tronco deitado em cima das tábuas.
Inclinava-se, batia com os nós dos dedos, escutava, levantava-se meneando a cabeça, exactamente como faz o médico quando estamos doentes na cama, com muita febre. Mas Vicente não parecia preocupado. Continuou a auscultar a árvore, repetindo de vez em quando:
— Está boa… está muito boa… Está saudável… Há-de cantar… Hão-de ver que é verdade o que lhes digo. Há-de cantar, melhor do que quando estava carregadinha de pássaros.
No dia seguinte, tinha desaparecido tudo. Na cabana já só restavam alguns ramos e um monte de serradura. As crianças puseram-se à procura e lá acabaram por encontrar o ácer no sótão. Mas, desta vez, ficaram muito decepcionadas. A árvore estava irreconhecível, toda transformada em grandes tábuas. Tinha mesmo o aspecto de uma árvore morta.
— O senhor Vicente estava a brincar connosco — disse Isabel. — Ele nunca vai fazer cantar esta árvore. Só se fosse feiticeiro. E o senhor Vicente não é nenhum feiticeiro.
— Sabes lá?
Isabel olhou para o irmão muito espantada.
— Achas que ele é feiticeiro!? — perguntou.
Gerardo deu-se ares de importante:
— Não seria impossível. Eu sei cá umas coisas… umas coisas.
De facto, gabava-se de que estava mais bem informado do que a irmã, mas o certo é que não sabia mais acerca do tio Vicente do que vocês e eu. Mas a Primavera está cheia de vida e as crianças depressa esqueceram a velha árvore. Antes da seiva começar a subir, o avô tinha ido à floresta e trouxera dois áceres pequenos que plantara à beira do caminho, de cada lado do velho cepo. Agora, aquelas árvores pequenas já tinham folhas e começavam a cantar com o vento que vinha do horizonte distante, empurrando enormes nuvens brancas no céu azul.
Passou a Primavera e depois, um dia, no mês de Julho, o avô tirou o carro de mão da casa da lenha e foi ao sótão buscar as tábuas maiores que tinha feito com o ácer.
— Vamos lá então à oficina do Vicente — disse.
Isabel trepou para a carroça. O avô puxava pelo timão, enquanto Gerardo empurrava atrás. Andaram mais de uma hora até chegarem à aldeia. Uma hora debaixo de um sol escaldante.
Vicente vivia mesmo no fim da aldeia, numa casa cujas janelas viam correr a água do ribeiro. Mal ouviu ranger as rodas de ferro na calçada do pátio, Vicente apareceu à soleira da porta. Levantou os braços num gesto cómico e exclamou.
— Diacho! Aqui estão clientes sérios! Há quanto tempo vos esperava!
Vestia uma camisa clara e um avental de lona azul que lhe chegava aos pés. As mangas arregaçadas deixavam ver os antebraços magros e por isso as mãos pareciam ainda mais gordas.
Ajudou o avô a transportar as tábuas até ao fundo de um grande barracão sombrio onde as crianças não se atreveram a entrar. Lá de dentro vinha um cheiro esquisito, por isso deixaram-se ficar ali de mãos dadas.
Contudo, Vicente mandou-as entrar para um outro compartimento mais claro. O sol, reflectido pela água do ribeiro, dançava no tecto.
— A madeira — dizia ele — é um material nobre.
O reflexo da água do ribeiro brincava por cima das suas cabeças, assemelhando-se a ondas agitadas.
— Dêem-me licença de que acabe o que estava a fazer — disse Vicente.
O avô aprovou e o velhote lançou-se ao trabalho. As suas mãos enormes, que pareciam tão desajeitadas, podiam manipular os objectos mais minúsculos e mais frágeis. Vicente explicou que estava a polir o mecanismo da fechadura de um cofre de segredo. Fazia tudo em madeira, até as fechaduras e as dobradiças.
Para ele, o metal estava ao serviço da madeira.
— A madeira — dizia — é um material nobre. Vivo? Sempre vivo. O metal é bom para fabricar os instrumentos que permitem trabalhar a madeira. Mas a madeira… a madeira…
Quando pronunciava esta palavra, os olhos nem pareciam os mesmos.
Vicente não era um homem como os outros: era um apaixonado pela madeira.
Falava dela como de um ser vivo, como de uma pessoa da sua família com quem vivesse há anos. Com a madeira podia fazer tudo. Caixinhas pequeninas incrustadas de marfim e de embutidos complicados. Pequenas mesinhas, cujos pés eram tão finos que as crianças até sustinham a respiração com receio de as fazer cair.
As paredes da sua oficina estavam guarnecidas de instrumentos colocados em prateleiras ou suspensos em ganchos. Havia plainas de todos os tamanhos e de todas as formas, serras, goivas, tesouras, galopas, caixas com formas, compassos e muitos outros instrumentos cujos nomes as crianças estavam a ouvir pela primeira vez. E depois, havia frascos de cola, garrafas de verniz, bolas de cera e madeira por todo o lado. Madeira de todas as qualidades, de todas as formas e de todas as cores.
Quando Isabel, que era muito curiosa, se dirigia para uma pequena porta e já tinha a mão pousada no puxador, Vicente correu até junto dela:
— Não, não — disse ele — não entres aí… É nesse quarto que está o meu segredo.
Isabel imaginou o quarto do Barba-Azul, mas riu-se. Há muito tempo que não acreditava nessas coisas.
— É o meu segredo — repetiu Vicente. — Hás-de conhecê-lo quando ouvires a tua árvore cantar.
O Verão passou demasiado depressa, com as férias e as maravilhosas correrias pelo campo e pela floresta. As duas árvores plantadas pelo avô cresciam bem. Os pássaros já lá pousavam. No início das aulas, as suas folhas começaram a ficar amarelas e os fortes ventos de Outono levaram-nas para longe. Os dois pequenos áceres pareciam mortos, mas Gerardo e Isabel sabiam que acabavam de adormecer para o Inverno. Por causa dos trabalhos de casa, sempre difíceis, e das lições a estudar, as duas crianças não pensaram mais nos áceres nem na promessa do tio Vicente.
Numa quinta-feira de manhã, uns dias antes do Natal, os pequenos aperceberam-se, ao acordar, de que a neve tinha chegado.
Havia um grande silêncio em volta da casa, e a luz filtrada pelas frinchas das persianas era mais branca do que a das outras manhãs. Levantaram-se muito depressa, apesar do frio.
— Os pássaros! — disse Isabel. — Temos de pensar nos pássaros!
Ia abrir a janela para deitar comida, quando avistou, a cambalear pela vereda branca, o coelho mecânico.
— Vicente, é o tio Vicente!
Era mesmo ele, vestido com a peliça cinzenta e o boné de orelhas, mas trazia debaixo do braço um grande volume, comprido, embrulhado num papel castanho. O velho homem aproximava-se lentamente, acertando com dificuldade no traçado do caminho. Passou pelos dois áceres que mal se viam no meio daquela brancura, o boné dançou por uns momentos acima da sebe e depois desapareceu.
— É ele! — repetiam. — É mesmo ele!
Não sabiam o que trazia o tio Vicente, mas o coração pôs-se-lhes a bater muito depressa. Mal os pés do velho bateram na soleira de pedra, Gerardo correu a abrir a porta.O ar que entrou ao mesmo tempo que Vicente vinha salpicado de flocos brancos. O fogo crepitou mais forte e depois fez-se silêncio. Estavam ali os quatro a olhar para o tio Vicente e para o seu embrulho muito bem atado.
Vicente pousou o embrulho em cima da mesa, tirou os óculos, limpou-os devagarinho, assoou-se, voltou a pôr os óculos e aproximou-se do fogo, a esfregar as mãos, que faziam um ruído como se fossem de lixa.
— Está-se melhor aqui do que lá fora — disse ele.
As crianças estavam impacientes. Uma de cada lado da mesa, miravam o embrulho sem ousarem tocar-lhe. O velho homem parecia que sentia prazer em fazê-las esperar. Observava-as pelo canto do olho e deitava uns sorrisos cúmplices aos avós.
Por fim, virou-se e disse:
— Então, por que esperam para o abrir? Não sou eu que vou desmanchar o embrulho!
Quatro mãozinhas voaram ao mesmo tempo. Eram muitos nós e estavam muito apertados.
— Avó, empresta-nos a tesoura…
— Não — disse Vicente. — É preciso aprender a paciência e a economia. Desfaçam os nós e não estraguem nada, quero recuperar o fio e o papel.
Foi preciso ter paciência, magoar as unhas, aborrecer-se um bocadinho. O tio Vicente ria-se.
Os avós, tão impacientes como as crianças, esperavam, seguindo com os olhos todos os seus gestos. Finalmente o papel foi retirado, e surgiu uma caixa comprida de madeira avermelhada e luzidia. Era mais larga num lado do que no outro. Vicente aproximou-se lentamente e abriu-a.
No interior, numa cama de veludo verde, dormia um violino.
— Aqui está, e tudo isto feito com a vossa árvore — disse o Vicente.
— Meu Deus — repetia a avó, que juntara as mãos em sinal de admiração. — Meu Deus, que lindo que é!
— Ora, uma destas!… com que então!… — gaguejava o avô. — Sabia que eras habilidoso, mas não tanto!
O velho artesão sorria. Passou várias vezes a mão pelo bigode antes de dizer:
— Percebem agora por que é que não queria deixar-vos entrar na estufa? É que veriam lá violinos, guitarras, bandolins e muitos outros instrumentos. E vocês teriam adivinhado tudo. É verdade! Sou luthier. Faço violinos… E o ácer, sabem, é a madeira que melhor canta.
A sua mão avançou lentamente para acariciar o instrumento, depois retirou-a a tremer.
— Então? — disse ele a Gerardo. — Não queres experimentar? Não queres fazer cantar a tua árvore? Anda lá, podes pegar nele. Olha que não morde, fica tranquilo.
O rapaz retirou o violino da caixa e pegou nele como via fazer aos músicos. Pousou o arco em cima das cordas e fez sair uma chiadeira horrorosa. A avó tapou os ouvidos, enquanto o gato, acordado em sobressalto, desaparecia debaixo do guarda-loiça. Todos se riram.
— Está bem! — disse o avô. — Se é a isto que chamas cantar!
— Tem de aprender — disse Vicente pegando no instrumento, que colocou debaixo do queixo.
E o velho luthier de mãos enormes pôs-se a tocar. Tocava e caminhava devagarinho em direcção à janela. Imóveis, as crianças olhavam e escutavam.
Era uma música muito suave, que parecia contar uma história semelhante às velhas lendas vindas do fundo do horizonte.
Vicente tocava, e era mesmo a alma da velha árvore que cantava naquele violino.
Bernard Clavel
L’arbre qui chante
Paris, Pocket Jeunesse, 2002
Tradução e adaptação